domingo, 21 de outubro de 2007

O DEDO APONTADO PARA BENAZIR BHUTTO


“Não aponte o dedo para Benazir Bhutto, seu puto. Ela está de luto pela morte do pai.”

A primeira vez que ouvi sobre a ex-premiére paquistanesa Benazir Bhutto foi quando ouvi a música de Chico César, cujo trecho é citado acima. Uma música linda, de frêmito africano, com mescla de ritmos de música clássica, como sugere o som do bandolim, e de música pop, com releituras de clássicos brasileiros, ao fundo, de leve. E por ser assim, encantadora, que nos convida a entrar na dança, a cair no frenesi do ritmo, a entrar mesmo em transe, a música me fez perguntar quem seria Benazir.

Fui à Biblioteca, pesquisei por assunto, e nada. Não conhecia nenhum título que falasse da mulher, aliás, só sabia que era mulher por causa do pronome pessoal feminino na letra da canção. Entrei na internet, e nada, em Português. Joguei frases em inglês para achar alguma coisa, e encontrei parcos textos referentes a Benazir Bhutto, que teve pai assassinado na década de 70 e irmão idem, e que teria sido primeira-ministra do Paquistão por duas vezes, e por duas vezes teria sido destituída do cargo, sob acusação de corrupção.

Mas a Benazir da música continuou a soar em mim com mais força, retumbante. E ainda ouço Chico César, até hoje sem saber porque ele falou dela numa música nitidamente afro-brasileira, linda na expressão, mais bela ainda na melodia.

Na quinta-feira, dia 18 de outubro, não é que vi pela primeira vez uma notícia quente sobre Benazir Butho? Voltando a seu país, após seis anos de exílio voluntário numa nação da Europa. Voltando, foi recebida em meio a estrondos de ovações e bombas, que mataram – as bombas, claro – 139 pessoas.

Seja lá por que motivo Chico César falara de Benazir Bhutto, sua canção ainda ecoa, ainda é atual, ao dizer que não se aponte o dedo para Benazir Bhutto, porque nunca na história desse país, ela esteve tão assustadoramente de luto pela morte de paquistaneses. País que não conheço, mas pelo qual sinto, e sinto muito – no compromisso com o humano, e contra a bestialidade, seja lá de que lado este mal esteja, não importando de onde venha – pelo coro da violência, que é a mesma, no Rio, em São Paulo, Bagdá, Jerusalém, ou Lahore. Sinto muito. Mas, “o olho que existe é o que vê”, eu sei.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

UMA PEDRA NO MEIO DO COW MINHO















Sentada ao lado do poeta Drummond uma vaca lê. De costas para o mar de Copacabana, de olhos afundados na leitura, uma vaca, de patas cruzadas e rabo muito bem agasalhado, lê com toda a atenção, com uma concentração jamais vista entre os leitores humanos. Ali, parada nas palavras secretas do livro, na articulação da voz do autor com sua própria voz, a vaca se desliga do mundo e se petrifica diante do encanto do livro, da magia empedernida da leitura, remoendo palavras, ruminando um destino qualquer.

O que diria Drummond sobre dividir seu banquinho com uma vaca, em tempos de cultura pop e pós-moderna, seja lá o que for tal conceito? O que será que ela lê? Um manual de técnicas veterinárias? “Como negar leite ao seu dono pela manhã”?, “Como vencer o brejo em cem passos”? Mas talvez esses assuntos não sejam tão encantadores assim. Será que lê uma antologia poética do velho Drummond? Boitempo I?, Boitempo II?

Uma vaca sentada ao lado de um de nossos maiores poetas é surreal. Vem de Lautreamont, vem de Aragon, de André Breton? Ou será apenas uma cena idílica pintada por Dali, num momento de profunda depressão? Será uma vaca de nariz sutil? Sim. Ela tem, portanto, bom faro para a leitura. Seu olhar perscruta a vida e a arte. É uma junção do belo com a simpleza das mentes atuais, da criatividade moderna, que não sabe para onde ir, mas sabe que tem de criar impacto, enquanto a vaca passa. Mas a vaca não passa. Ela está sentada no banco de Drummond, lendo o poema de sete faces. A vaca, meu Deus, está parada!

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A PÁLPEBRA EM MOVIMENTO: O CINEMA DOS OLHOS DE BAUBY

O maravilhoso da história imaginada por meio das palavras narradas poderá ser comprovado em imagens. O drama e a beleza andam de braços dados em O escafandro e a borboleta, e agora, todo mundo que tiver olhos dentro de si, que tiver sensibilidade, olhos dentro d’alma, poderá conferir o filme que contará a história incrível de Jean Dominique Bauby, um jornalista francês que, ao sofrer um acidente cerebral em 1995, escreveu um livro apenas com o piscar de uma das pálpebras.

Imagine um homem sem habilidade para falar, andar, se mover ao menos, imagine um homem sem qualquer movimento, nenhuma sensibilidade em seus membros, um homem sem fala. Imagine, e terá diante de seus olhos um homem que perdeu todos os movimentos do corpo, restando-lhe apenas o pestanejar de uma pálpebra, e que com essa mínima ferramenta escreveu um livro, não perdendo, portanto, a vontade de viver, vivendo para contar.

Cada piscar, em variantes que a minimalidade de uma pálpebra permite, representava um símbolo da escrita, que seu interlocutor traduzia e registrava. É isso. A história de Jean Dominique Bauby é maravilhosa. É o exemplo máximo que um homem pode dar de sua superação. Bauby morreu em 1997, mas o recado já estava dado, e será reforçado com o filme, cujo lançamento está previsto para outubro.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

ESCRITOR BRILHANTE E CRÍTICO MORDAZ

No dia 1º de julho de 1998, morria o crítico, biógrafo e poeta britânico Martin Seymour-Smith. Seu último trabalho foi o polêmico e ousado Os 100 Livros Que Mais Influenciaram a Humanidade , lançado no Brasil em 2002 pela Difel, em que o crítico comenta a importância dos autores e obras que, segundo ele, modificaram de algum modo a maneira de sentir e pensar dos homens.

De modo geral, o trabalho de Seymour-Smith sempre foi polêmico, preferindo uma análise marcada pela subjetividade, sem deixar de observar cada centímetro dos fatos que rodeiam seu objeto de estudo. Foi assim ao escrever a biografia do poeta e romancista inglês Thomas Hardy, suscitando fúrias e admiração nos leitores ao redor do mundo. Foi assim também ao ter seu último livro publicado.

Enquanto em Thomas Hardy – A Biography, a polêmica fica por conta das minúcias sobre a vida pessoal do biografado, como tentativa de por abaixo a interpretação de seus biógrafos anteriores, em Os 100 Livros, o grito de protesto vem daqueles que não se conformam com a preterição de seus queridinhos por parte de Seymour-Smith.

Entre os que ficaram de fora da lista do polêmico selecionador, estão Heidegger e Husserl. Mas os motivos da ausência de um e de outro são díspares. O primeiro porque, para Seymour-Smith, era um “charlatão e jurado anti-semita” cuja filosofia encanta muita gente, de maneira incompreensível, mas que não se pode dizer que mudou alguma coisa no paradigma do pensamento humano.

Já Husserl, só não fez parte da lista – com Idéias: Introdução Geral à Fenomenologia Pura – porque “sua influência foi totalmente indireta”. Segundo Seymour-Smith, Husserl só é acessível aos filósofos profissionais. Mas acrescenta: “O existencialismo, porém, não pode ser entendido sem Husserl, um homem decente e honrado, bem diferente de Heidegger, seu aluno traiçoeiro”.

Esse rancor em relação a Heidegger talvez se explique pelo fato de que Seymour-Smith era judeu. E todos sabemos que Heidegger fez parte do staff nazista de Hitler, aliás, o único filósofo entre a trupe imediata do ditador alemão. Isso foi dito inclusive pelo mais famoso e mais completo biógrafo de Hitler, Joachim Fest.

Em todo caso, Seymour-Smith era polêmico com muitas sumidades intelectuais. Sua verve cáustica não se dirige apenas ao filósofo nazista. Em cada página dedicada a uma das obras analisadas, em Os 100 Livros, ele aplica um pouco de sua acidez contra alguém ou alguma coisa.

Sobre o filósofo francês Jacques Derrida, ele diz: “Derrida é tão interessante como um borrão, e somente uma conspiração de mentes inseguras pode dar-lhe alguma importância”. Mas Derrida não está sozinho nessa. Afinal, da própria filosofia francesa atual, Seymour-Smith não deixa pedra sobre pedra: “O Pensamento francês contemporâneo não se distingue nem pelo seu humor nem por sua imediata inteligibilidade. Distingue-se, talvez, isso sim, pela veemência de seu pomposo blá-blá-blá”.

As pinceladas malditas não poupam sequer certos pensadores influentes, da lista que ele mesmo elaborou. B. F. Skinner, por exemplo, que está entre os que mais influenciaram a humanidade com seu livro Para Além da Liberdade e da Dignidade, era, segundo o crítico mordaz, “um excelente cientista experimental, mas, como ser humano, um idiota desesperado para banir de si mesmo qualquer traço de ternura que pudesse possuir”.

Trechos antes dessa avaliação, ele já havia dito que Skinner “pensava saber melhor do que ninguém o que era melhor para os outros”, fazendo com que sua conduta, a de Skinner, diante da vida fosse “mais repreensível, se não totalmente estúpida, do que a de qualquer outro estudioso”.

Ainda de Heidegger: “Hoje sinistramente popular (...), nazista até o fim, anti-semita, oportunista e fraudulento (...), nazista não arrependido (...), maléfico inspirador do corrente niilismo chamado de pós-modernismo”. Com todos esses adjetivos, talvez o mais leve seja mesmo “charlatão”.

De T. S. Eliot, ele diz: “hoje, aos olhos de muita gente, ele não passa de um velho anti-semita e secretamente um fascista, cujos versos não são muito mais do que uma antologia e amálgama do talento de outros homens”.

Mas, a despeito de tudo que foi citado acima, Seymour-Smith era sobretudo honesto com seus leitores, em relação ao que pensava. E elogiou muita gente, quando era o caso de se fazerem apreciações. Num só período de frase, ele aprecia dois grandes filósofos, ao falar de Thomas Hobbes: “nenhum filósofo de qualquer nacionalidade o superou na prosa e somente Schopenhauer se lhe igualou”.

Ao citar Relatividade, por exemplo – livro que Einstein publicou para divulgar sua teoria homônima –, como uma das obras que mais influenciaram a humanidade, Seymour-Smith se sentiu na obrigação de dizer: “Cá entre nós, podemos apenas fingir que entendemos a Teoria da Relatividade de Einstein, mas temos, pelo menos, uma boa desculpa: ela é tão difícil de ser compreendida, tão misteriosa à sua maneira, que levou alguns anos até ser aceita pela maioria dos físicos.”

Da mesma forma, à sua maneira, Martin Seymour-Smith é encantador. Ele nos passa a impressão de que foi um homem conhecedor de todas as coisas, que penetrou todos os mistérios, que leu tudo, que sabia tudo sem ser pernóstico, sem ser, de maneira alguma, enjoativo e pedante. Sua erudição nos mantém o tempo todo acesos ao que ele diz.

Seymour-Smith é sem dúvida um autor prolífico. Entre suas mais de 40 obras, estão os livros de poesia Wilderness e Reminiscenses of Norma. Também escreveu sobre a poesia de Shakespeare e sobre as prostitutas na literatura. Mas, apesar de toda a sua dedicação ao trabalho intelectual e de seus 50 anos – dos 70 que viveu – serem voltados para isso, pouco se sabe sobre sua vida. Na internet não há quase nada sobre ele. Pode-se dizer que Seymour-Smith é mais um exemplo de autores brilhantes lançados no mar da solidão e do esquecimento.

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Veja a lista de Os Cem Livros Que Mais Influenciaram a Humanidade, segundo Seymour-Smith


I Ching

O Velho Testamento

A Ilíada e A Odisséia, de Homero

Os Upanishads

O Caminho e Seu Poder, de Lao-tzu

O Avesta

Analectos, de Confúcio

História da Guerra do Peloponeso, de Tucídedes

Obras, de Hipócrates

Obras, de Aristóteles

História, de Heródoto

A República, de Platão

Elementos de Geometria, de Euclides

O Dhammapada

A Eneida, de Virgílio

Da Natureza da Realidade, de Lucrécio

Exposições Alegóricas das Leis Divinas, de Philo de Alexandria

O Novo Testamento

Vidas Paralelas, de Plutarco

Anais, Da Morte do Divino Augusto, de Cornélio Tácito

O Evangelho da Verdade

Meditações, de Marco Aurélio

Hipotiposes Pirrônicas, de Sexto Empírico

Novenas, de Plotino

Confissões, de Agostinho de Hipo (St Agostinho)

O Corão

Guia Para os Perplexos, de Moisés Maimônides

A Cabala

Suma Teológica, de Tomás de Aquino

A Divina Comédia, de Dante Alighieri

Elogio da Loucura, de Desidério Erasmo (de Roterdã)

O Príncipe, de Maquiavel

Do Cativeiro Babilônico da Igreja, de Martinho Lutero

Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais

Institutos da Religião Cristã, de Calvino

Da Revolução das Órbitas Celestiais, de Nicolau Copérnico

Ensaios, de Michel Eyquem de Montaigne

Dom Quixote (primeira e Segunda partes), de Miguel de Cervantes

A Harmonia do Mundo, de Johannes Kepler

Novum Organum, de Francis Bacon

Primeiro Folio, de Shakespeare

Diálogo Sobre os Grandes Sistemas do Universo, de Galileu Galilei

Discurso Sobre o Método, de René Descartes

Leviatã, de Thomas Hobbes

Obras, de Gottfried W. Leibniz

Pensamentos, de Blaise Pascal

Ética, de Baruch Spinoza

O Progresso do Peregrino, de John Bunyan

Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton

Ensaio Sobre a Compreensão Humana, de John Locke

Os Princípios Sobre o Conhecimento Humano, de George Berkley

A Nova Ciência, de Giambatista Vico

Um Tratado Sobre a Natureza Humana, de David Hume

A Enciclopédia, de Denis Diderot (org.)

Um Dicionário da Língua Inglesa, de Samuel Johnson

Cândido, de François Marie de Voltaire

Senso Comum, de Thomas Paine

Uma Pesquisa Sobre a Natureza Humana e a Causa da Riqueza das Nações, de Adam Smith

Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon

Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant

Confissões, de Jean-Jacques Rousseau

Reflexões Sobre a Revolução na França, de Edmund Burke

Reivindicações dos Direitos da Mulher, de Mary Wollstonecraft

Uma Pesquisa Sobre Justiça Política, de William Godwin

Ensaio Sobre o Princípio da População, de Thomas Robert Malthus

Fenomenologia do Espírito, de George Wilhelm Hegel

O Mundo Como Vontade e Representação, de Arthur Schopenhauer

Curso em Filosofia Positivista, de Auguste Comte

Da Guerra, de Carl Marie von Clausewitz

Ou Isso/Ou Aquilo, de Søren Kierkegaard

O Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels

“Desobediência Civil”, de Henry David Thoreau

A Origem das Espécies, de Charles Darwin

Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill

Primeiros Princípios, de Herbert Spencer

“Experiências sobre Híbridos das Plantas”, de Gregor Mendel

Guerra e Paz, de Tolstoi

Tratado Sobre Eletricidade e Magnetismo, de James Clerk Maxwell

Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche

A Interpretação dos Sonhos, de Freud

Pragmatismo, de William James

Relatividade, de Albert Einstein

Tratado da Sociologia Geral de Vilfredo Pareto

Tipos Psicológicos, de Carl G. Jung

Eu e Tu, de Martin Buber

O Processo, de Franz Kafka

A Lógica da Descoberta Científica, de Karl Popper

Teoria Geral do Emprego, Lucro e Dinheiro, de John Maynard Keynes

O Ser e o Nada, de Jean-Paul Sartre

O Caminho para a Servidão, de Friedrich von Hayek

O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir

Cibernética, de Norbert Wiener

1984, de George Orwell

Histórias de Belzebu para Seu Neto, de Ivanovitch Gurdjieff

Investigações Filosóficas, de Ludwig Wittgenstein

Estruturas Sintáticas, de Noam Chomsky

A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas S. Khun

A Mística Feminina, de Betty Friedan

Citações do Comandante Mao Tse-tung, de Mao Tse-tung

Além da Liberdade e da Dignidade, de B. F. Skinner

MEIA TAÇA, POR FAVOR: AMOR DEMAIS FAZ MAL


A jornalista uruguaia Carmen Posadas (1953 - ), radicada na Espanha desde que se entende por gente, é autora de um livrinho interessante e intrigante: Um veneno chamado amor: ensaios sobre paixões, ciúmes e mortes. Esta pequena obra se propõe a abordar o lado fatal do amor. A autora parte do princípio de que, a despeito de todo o revestimento civilizatório da humanidade, principalmente da sociedade ocidental, o amor ainda faz o homem perder as estribeiras. Segundo ela, pode-se ter perdido o prolongamento das relações, mas não a intensidade e a violência da paixão concomitante a isso que se chama sentimento nobre.

Seu livro começa com uma epígrafe de La Rochefoucauld: “Se julgarmos o amor pela maioria de seus efeitos, ele se parecerá mais ao ódio que à amizade”. E ainda na introdução Posadas diz: “Vivemos numa época estranha, em que perseguimos sonhos de paixões eternas, mas nos conformamos com amores efêmeros”. No entanto, apesar dessa efemeridade, ele não acabou, é “um sentimento que sempre existiu e sempre existirá. E não apenas um sentimento fictício. Um sentimento que leva aos melhores e aos piores extremos. Um sentimento que leva a cometer loucuras e até horrores”.

É sobre essas loucuras e esses horrores que ocupa a autora. A razão desse interesse, ela explica: “Porque amei e sofri, interessei-me por aquelas mulheres e por aqueles homens que foram capazes de atos e comportamento totalmente irracionais por amor”.

Posadas fala de tais sentimentos para defender a tese de que existe uma diferença entre amor e paixão. Esta última é a grande responsável por todo o destempero amoroso, e é chamada de Eros, em contraposição ao amor “calmo”, chamado de Ágape.

A autora vai à mitologia grega buscar esse saber. Para ela, essa tempestade amorosa é uma cultura que se absorve dos livros, da literatura. Está tudo lá, desde os gregos, embora o mito do amor-paixão tenha surgido no século XII, na França, diz a autora numa tácita releitura de Stendhal e Denis de Rougemont.

O ato de remoer a paixão por meio da literatura é que faz os fatos reais serem ainda mais pungentes. Os jornais estão cheios de loucura amorosa, de cenas reais da violência desencadeada por esse mito. Eis a tese da autora.

No íntimo, tudo que Posadas diz já está escrito em outros livros. O interessante de sua versão é que ela enumera uma infinidade de situações em que Eros se faz presente e bota pra quebrar. “A história foi testemunha de grandes amores passionais, mas a paixão não é classista. Todos os reis e vassalos, famosos e anônimos, pobres e ricos, podem contrair essa doença sensual-sexual-sentimentalmente transmissível”, conclui a autora na abertura da primeira parte de seu livro. Vê-se aqui que ela encontra no amor-paixão muito mais que um veneno. É uma doença.

“O mito da paixão disseminou-se tanto no inconsciente coletivo que parece que a vida sem amor não merece ser vivida. Se, por acaso, nos esquecemos disso, sempre há uma revista ou um programa da televisão que se encarrega de nos lembrar: você precisa é de amor”.

Duas coisas. Primeiro: essa senhora deve ter tido uma desilusão amorosa dos diabos. Segundo: No trecho citado acima, a autora parece não ter se debruçado muito sobre o sentido da palavra “amor”. Afinal, existe ou não existe um amor que não a paixão? Se existe, não há porque abordar este vocábulo tal como está sendo feito em sua consideração acima. Uma pequena falha de critério da autora que não trava a leitura do livrinho, mas incomoda.

Seu livro é dividido em quatro seções. A última parte trata das conseqüências trágicas do amor-paixão, não pelo que ele oferece, mas pelo que ele nega. Quando o medo de perder o ser amado toma conta da situação, quando um já não ama o outro e o amor é manco, o desfecho tende a ser o mais amargo possível.

Nesse caso, a tese de Posadas é que, ao se descobrir traído, o homem quer matar, e muitas vezes mata. Já a mulher, sente-se fracassada em seu papel de preservar o ser amado, e volta para si todo o ódio que “deveria” sentir dele e da mulher que o “roubou” dela. Desse modo, a preterida, abandonada, traída, ou se mata de uma vez (suicídio) ou mata-se aos pouquinhos, com um câncer, por exemplo. Trata-se de uma afirmação polêmica. O que diriam Camille Paglia e Susan Sontag?

Trecho:

“Em cada um de nós dorme um Édipo ou uma Eléctra desiludida”.

“... Quando o ser a quem entregamos nosso coração e nossa alma nos abandona, o ódio e os ciúmes renascem”.

“O mito da paixão não apenas proporciona altos lucros às editoras e à indústria cinematográfica, mas também rege nosso comportamento, queiramos ou não”.

ELOGIO DA METÁFORA


A vida não seria a mesma sem as metáforas. Não haveria entendimento entre razão e emoção, ciência e senso comum. Sem as metáforas a poesia estaria calada, e a literatura sequer haveria nascido. Nem mesmo a filosofia, principalmente esta, teria dado à luz idéias que explicam ou explicaram, ou tentaram explicar, o mundo convincentemente, fundindo o real com o espírito humano.

O mito da caverna, por exemplo, é uma metáfora acerca do discernimento racional, e não passaria de brumas, não fosse essa bifurcação da linguagem, não fora essa capacidade do homem de associar imagens, de superpor dois mundos, para clarear o significado das coisas, arrancando a substância de um e colocando em seu esqueleto a roupagem do outro.

Platão, no livro VII da República, coloca toda a condição humana, metaforicamente, dentro de uma caverna, e diz que a realidade nua não seria suportável para o homem comum, para aquele que não se ocupa das realizações do espírito, ou seja, para aquele que vive dentro da caverna e nunca encarou de frente a luz do sol, vendo apenas a sombra das coisas lá fora. A filosofia, senhora da razão, organizadora das idéias, seria a porta dessa caverna para o mundo lá fora, a realidade mesmo, pela qual o homem poderia sair, se banhar da luz do sol da verdade, e voltar para ensinar aos homens como são as coisas de fato.

O sol como metáfora aparece em tudo quanto é clichê, desde a filosofia até em poesias baratas e mal feitas. Mas, é notável como Schopenhauer descreveu seu conceito de gênio utilizando essa luz maior. Para ele, o homem comum utiliza o aparelho cognoscitivo como uma lanterna que ilumina o caminho. Já para o gênio, esse mesmo patrimônio é o sol que revela o mundo.

Vejamos outra. Para Freud, o sonho revela fatos verdadeiros, só que de forma distorcida, e para compreendê-los é preciso um certo malabarismo de linguagem. E tal compreensão complica muito mais por se tratar o sonho de uma luz menor no céu do humano. Para ele, é como se a nossa consciência fosse o universo: o sonho, a luz das estrelas; e a vigília, o clarão avassalador do sol. Daí a dificuldade de se lembrar dos pormenores do que se sonhou, daí a dificuldade da revelação.

A metáfora é o buraco da fechadura por onde passa Alice ao país das maravilhas. É a ponte de passagem para a dimensão do humano. A vida seria mesmo sem graça sem esse recurso de linguagem, que aqui representa todas as outras figuras lingüísticas. Seria chato se houvesse apenas tratados médicos, sem metáforas, registros cartoriais. Todas as formas de conhecimento, na verdade, fazem uso da metáfora para se explicarem: a religião, a filosofia, a ciência e a arte. É na arte, contudo, que ela, a metáfora, se sobressai mais.

Em uma de suas músicas, Chico César, o gênio paraibano, canta: “Se você olha pra mim, se me dá atenção, eu me derreto suave: neve no vulcão”. Não haveria frialdade, nem pureza, para suportar a veemência de tamanho pecado e calor.

Metafórico também é a madalena de Proust, aquela bolacha citada no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, No Caminho de Swann, quando o jovem Marcel, o Narrador, já não se lembra de muita coisa de sua Combray de criança. Um dia, sua mãe lhe oferece chá, acompanhado de um desses bolinhos, cujo sabor, misturado ao do chá, faz o rapaz se recordar, em detalhes, do seu tempo de infância em meio à geografia da cidade. “Assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do dr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidades e jardins, de minha taça de chá”.


Nesse caso, a taça é uma espécie de metonímia da madalena, porque é ela – a bolachinha que ficou famosa depois desse reboliço literário de Proust –, embebida do líquido, que traz de volta a imagem do passado. Mas onde se caracteriza a bolacha como metáfora? No momento em que você, caro leitor, ao sentir o cheiro ou o sabor de alguma coisa, e reviver a delícia da lembrança, sobrepor nesta a imagem daquela, e dizer: isto é minha madalena.

HUMANA, DEMASIADO, HUMANA: um peteleco na linguagem

Um livro competente por um aspecto nem sempre o é por outro. Veja o caso de Humana, demasiado humana, biografia de Lou Andreas-Salomé escrita por Luzilá Gonçalves Ferreira. Trata-se de um belíssimo trabalho acerca da vida dessa russa encantadora, intelectual de traços fortes, autora do interessante Nietzsche em suas obras. Já no que diz respeito a comentários de filosofia da linguagem na obra de Luzilá, a biógrafa deixa um pouco a desejar.

Ela comete uma desatenção crítica ao falar de aforismos. Sobre os dias em que Lou passou numa cidade alemã chamada Stibbe, por exemplo, e lá escreveu uma série desse tipo de texto, Luizilá comenta: “Esses aforismos estão reunidos sob o título de Livro de Stibbe (...). Algumas vezes a afirmação do aforismo escrito por ela é reescrita e transformada em seu contrário [por outra pessoa], como se corrigida, numa espécie de censura à sua autora.” 

Ainda mais adiante, faz uma relação dos aforismos de Lou com o seu contrário escrito por Rée ou por Nietzsche: “‘Toda felicidade morre dela própria’ (Rée)”. “‘Toda felicidade sobrevive a ela própria’ (Lou)”. “‘O espírito nem sempre é obtuso’”. “[Os espíritos penetrantes freqüentemente são pobres, e uma grande riqueza de espírito se encontra às vezes entre pessoas obtusas]”. E assim por diante.

Acontece que esse tipo de exercício está dentro da lógica do aforismo, e muita gente faz isso. Não é correção, não é censura, nem uma simples brincadeira, joguetinho de palavras. No livro Sobre literatura, Umberto Eco faz uma análise sobre aforismos, e cita o italiano Pitigrilli, intelectual do começo do século XX, autor de Dizionario anti-ballistico, em que há vários desses textos. Eco enumera alguns deles feitos por Pitigrilli, e vai além: diz que “muitos aforismos brilhantes podem ser invertidos sem perder a força”.

Em seguida, demonstra como funciona a inversão:

“Muitos desprezam a riqueza mas poucos a sabem distribuir”;
“Muitos sabem distribuir a riqueza, mas poucos a desprezam”.

“A história nada mais é que uma aventura da liberdade”;
“A liberdade nada mais é que uma aventura da história”.

Ou seja, as anotações de aforismos com seus contrários, verificados por Luzilá, da maneira como estavam escritos, com certeza não eram uma simples brincadeira, nem correção. Era um exercício de sua lógica. Segundo Eco, a essência do aforismo se diferencia do paradoxo e da máxima, por ser esta mais longa e aquele impossível de ter seu contrário.

domingo, 19 de agosto de 2007

VINÍCIUS DE MORAES NO CERNE DO AFETO

No documentário homônimo sobre Vinicius de Moraes, Chico Buarque, ao depor sobre o amigo e parceiro, embargou a voz. Na sala de exibição ouviam-se suspiros de homens e mulheres, e eu, entusiasta da poesia de Vinícius, também chorei tacitamente. Mas é essa a intenção do diretor Miguel Faria Jr., emocionar o público, tal como fazia Vinícius em sua obra poética e musical, e até nas várias crônicas distribuídas pelos jornais de São Paulo e Rio de Janeiro.

Numa dessas crônicas, que pode ser lida no livro Para viver um grande amor, totalmente dedicado à Lucinha Proença, sua quarta mulher e grande paixão, ele fala do instante – termo até hoje entendido por poucos, porque embora Vinícius seja um poeta popular, considerado menor pela crítica, para compreender o conceito de instante na profundidade vivida por ele é preciso ler Platão (Parmênides), Pascal e Kierkeggard, no mínimo, e deixar de associar o nome do poeta aos românticos –: “Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci”. Quisera dar à sua amada vários instantes e situações temporais, o oceano de onde ele contemplava o espaço e tudo que há nele, inclusive “a placenta do infinito”.

Para Gilberto Gil, Vinicius trabalhava no cerne do afeto. E foi assim que o poeta se aventurou em nove casamentos e numa dúzia de affairs que se construíam pelas beiradas da afetividade. O filme de Faria Jr. vende bem a idéia de que Vinícius tencionava viver na alegria e no prazer da vida. Foi ele próprio, o poeta do amor efemeramente eterno, quem disse que a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não. Mas foi ele também, que ao falar do samba, identificou a tristeza indelével no coração das pessoas. Foi ele que num poema-crônica, minúsculo, efêmero, disse a um passarinho: “O que veio fazer na minha janela, meter o nariz? Se foi por um verso, não sou mais poeta, ando tão feliz!”. Ser poeta era ser triste, e ele vivia a alegria dentro da tristeza, e ainda dizia que era melhor viver do que ser feliz.

Ou seja, viver para Vinícius era mais do que ser feliz, era estar no olho do furacão das contradições humanas. Viver para ele era amar, acima de tudo, ainda que o amor doesse, e dói, porque fora do amor há um espaço vazio, e no fim do amor está a solidão. E amar a todos. Numa de suas cartas, presente na coletânea organizada por Ruy Castro, ele traça sua condição humana, a regra de sua própria vida, que ele mesmo diz ser regra que não é regra. "Não é nada senão um uso poético da minha vida. Só andar na ponta dos pés. Só ser delicado. Só castigar a si (sic) próprio. Só aceitar o inaceitável. Só criar em alegria. Etc., e sobretudo: só ser íntimo."

Sobre Vinícius, sou mais ou menos como Menocchio sobre o universo (aquele personagem de O queijo os vermes, que queria impressionar reis e papas), tenho muito a dizer: mas não há tempo, e é tudo muito efêmero. Veja o documentário e chore. Se não chorar, não valeu. Veja de novo.

Uma última coisa. Se considerarmos as palavras de Drummond, clamando a todos o seu sentimento, explodindo seu vigor poético e bradando que seu coração é mais vasto que o mundo, para dez anos depois se redimir e dizer “não, meu coração não é maior que o mundo./ É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores”. Se observarmos o que há de profundo na reflexão de Affonso Romano de Sant’Anna, ao se descobrir finito dentro de uma vastidão que igualmente fenece, que demora mas finda, se considerarmos tudo isso, Vinícius de Moraes tinha razão: é bom viver e amar “dentro da eternidade e a cada instante”. E só.

Uma segunda última coisa: Para Lucinha Proença, entre tantas palavras, ele dedicou o belíssimo Soneto do amor como um rio. Se ainda não leu, leia. Se já, não custa nada ler de novo.

Este infinito amor de um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.

Este amor que surgiu inesperado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.

Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo

E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo ...

Vinícius de Moraes (113 – 1980), poema escrito em Montevidéu, 1959.

COMPLEXO DE PORTNOY: a história de um pervertido em crise

Alexander Portnoy, 33 anos de idade, Vice-Presidente de oportunidade humana numa empresa de Nova York. Filho de Jack e Sophie Portnoy. Irmão de Hannah, quatro anos mais velha do que ele. Formado em direito, o primeiro da turma, Alex, como é conhecido, tem um Q.I. de 158 pontos, mais ou menos a pontuação de Jô Soares e menos do que a de Roger da banda Ultraje a Rigor.

Com exceção das duas últimas informações, as outras constam no perfil do protagonista do romance Complexo de Portnoy, de Philip Roth (1933 - ). Publicado em 1967, nos Estados Unidos, o livro causou um grande reboliço. Não era para menos; a obra, narrada em primeira pessoa, traz a revelação de uma consciência. Não de uma consciência qualquer, mas a de uma judeu em conflito existencial, que se autodefine como um onanista (punheteiro mesmo, com perdão da palavra), exibicionista, voyeurista e fetchichista.

O título em inglês é Portnoy’s Complaint, ou seja, trata-se de uma reclamação sem fim feita por Alex a um analista (freudiano, certamente, porque seu paciente fala sem parar, e nada de intervenção) chamado Dr. Spielvogel. É como se ouvíssemos Alex em sua análise.

Numa espécie de regressão, provavelmente deitado no divã, de pés cruzados, com o direito sobre o esquerdo, exercitando um vaivém, Alex diz: “Durante o meu primeiro ano na escola, minha mãe estava tão profundamente encravada em minha consciência que eu julgava que cada uma das minhas professoras era ela disfarçada”.

O pai de Alex era um judeu ambicioso que depositava no filho a expectativa do sucesso que ele próprio nunca tivera. “Via em mim a possibilidade de a família ser ‘tão boa como as outras’, a nossa probabilidade de adquirir honra e respeito”, dizia Alex.

O velho trabalhava duro para educar os filhos. Primeiro, vendia apólices de seguro para “poloneses xucros”, “irlandeses esquentados” e “negros analfabetos”, que moravam nos bairros pobres de Jersey City. Tinha educação primária e ganhava 5 mil dólares por ano. Depois se mudou para Newark e continuou a fazer a mesma coisa. “Da maneira feroz e auto-aniquiladora como tantos judeus de sua geração serviam ás suas famílias, meu pai serviu minha mãe, minha irmã Hannah, mas especialmente a mim. Naquilo em que fora mais estorvado, eu haveria de ser livre: esse era o seu sonho”.

Seu grilo se aprofundava quando se tratava da genitora. Alex nutria todo o amor e toda a admiração do mundo pela mãe: onipresente, cheia de energia, supercuidadosa, atenciosa etc. Ele via essas qualidades, mas enxergava também a contradição dela quando passava do discurso de tolerância e afeto para a prática, no trato com a empregada Dorothy, que era negra. O conflito maior nessa relação era porque ele fazia tudo direitinho, mas ela exigia ainda mais dele; e foi assim que Alex cresceu, na bifurcação do amor e do tormento.

Na adolescência, tinha masturbações exageradas, de todos os tipos, inclusive umas em que ele se curvava para receber o próprio sêmen na boca. Nessa época, ele se põe entre o prazer sexual, das masturbações, e as regras judaicas para a alimentação. Sua mãe sempre reclamando e regulando tudo. “Não podia sequer pensar em beber um copo de leite junto com o meu sanduíche de salame sem ofender seriamente o Deus todo-Poderoso. Imagine o que me custou na consciência todas aquelas ejaculações”, reclama, num tom sarcástico.

Aos 33 anos, morando em Nova York, repassando sua vida ao analista, fala do pai e da mãe, das bronhas, e pergunta: “Doutor, diga-me, de que será melhor livrar-me: do ódio ou do amor?”. Crise. Ainda solteiro, vivia de casos vários e muita bronha. Tudo contrário aos princípios morais do Ocidente, na década de 60, para judeus ou não, principalmente para alguém com um cargo como o de Alex.

Há muitas situações que envolvem o pênis de Alex, desde suas masturbações, passando pelas altas transas, até as fantasias em que ele se imagina perdendo o bilau que a mamãe adorava quando ele era criança. Esses indícios de inquietação por causa do amor da mãe, que ao mesmo tempo é repressão, revela uma homossexualidade latente em Portnoy, que ele mesmo dá a chave para tal interpretação.

“Li o ensaio de Freud sobre Leonardo da Vinci, me desculpe a pretensão, mas as minhas fantasias são as mesmas: este pássaro enorme e asfixiante, batendo as asas frenéticas pelo meu rosto e pela minha boca de um jeito que não posso nem respirar”, desabafa. O fato é que Freud publicou um livro chamado Recordação da Infância de Leonardo da Vinci, em que ele analisa a tendência homossexual do gênio florentino pela lembrança que este tinha de um pássaro pousando em sua boca, o que representaria o ato da felação (sexo oral).

Com essa chave há que se duvidar da existência de seu psicanalista Spielvogel. O nome (que quer dizer alguma coisa parecida com “passarinho de brinquedo”, em alemão) indica que o doutor pode ser apenas uma criação do próprio analisando, principalmente porque no começo do livro há uma pequena introdução com apontamentos do psicanalista sob o título de “O pênis perplexo”. Quem sabe toda a análise não seja apenas Alex conversando com seu próprio órgão sexual!

A condição judaica também oprime o herói de Roth (ou anti-herói?). Sofre por ser judeu, por ser forçado a ser um judeu, com suas normas, preconceitos, sentimento de piedade por si mesmo. Há um conflito em sua alma pela dor do povo judeu que insiste em aparecer em todos os discursos judaicos, e ele, Alex, querendo sair dessa, desejando que o deixem em paz na sua condição de ateu. Ele se revolta porque está sempre ouvindo o discurso de que os judeus são um povo superior e que por isso sofrem perseguição.

Todo esse conflito talvez não existisse na cabeça de Alex se não houvesse a visível divisão entre o mundo judeu e o não judeu. É só lembrar da passagem em que ele deixa escapar que sua reclamação sobre os pais passa pela humilhação que sente ao ver seu genitor também se sentir humilhado por vender seguros para negros. Mas Alex encobre seu preconceito trabalhando numa instituição, como se sabe, humanitária, que pretende ser despida de qualquer preconceito. Ironia dos diabos. Um livro cutucante, até hoje.

POR QUE FREUD ERROU: a morte de Freud

Os intelectuais franceses, defensores entusiastas da teoria freudiana, sofreram um baque em 2006 com a publicação do Livro negro da psicanálise. Há na mídia de lá um grande debate em torno da cientificidade da obra de Freud. Na mídia de lá, porque nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, Freud já está morrendo.

Entre os livros mais contundentes contra as idéias do médico austríaco é Por que Freud errou, de Richard Webster, que passou uma década pesquisando a vida e a obra do autor de Interpretação dos sonhos para chegar à conclusão de que a Psicanálise é falsa ciência, que em sua essência o que há é um “cientificismo inexorável, redutor e subordinado à necessidade da fama que o afundou [Freud] cada vez mais num labirinto de erros”.

Um dos objetivos do livro é mostrar que, em vez de profundidade revolucionária, as idéias de Freud demonstram inexatidão e camuflagens retóricas. Quanto à aceitação do que Webster escreveu, ele mesmo é realista: “Qualquer trabalho que critique Freud corre o risco de provocar fortes ressentimentos”. Mais do que isso, quem segue mesmo os ensinamentos do gênio austríaco não leva a sério nada que rebata sua eficácia terapêutica. Isso porque a Psicanálise é mais do que uma simples teoria, é uma ótima fonte de renda. O próprio Freud o confessou, segundo Webster, citando um ex-discípulo do psicanalista, Sandor Ferenczi.

Em seu diário secreto, Ferenczi teria escrito que desconfiava da eficácia da Psicanálise, e “‘como prova e justificativa dessa desconfiança, lembro algumas declarações que Freud me fez. É óbvio que ele confiava em minha discrição. Disse que os pacientes não passavam de ralé. Só serviam para ajudar o analista a ganhar a vida e oferecer material para a teoria. É claro que não podemos ajudá-los. Isso é niilismo terapêutico. No entanto atraímos os pacientes escondendo-lhes essas dúvidas e incentivando suas esperanças de ser curados. (...) Outra prova é a aversão [de Freud] (...) a psicóticos e pervertidos, na verdade, sua aversão a tudo que considera “anormal demais”’” (página 322).

Webster não se cansa de gritar contra Freud. Quer mesmo acabar com a farsa, e é convincente em suas investidas. Para ele, o Inconsciente, a principal invenção freudiana, “não é apenas uma entidade oculta para cuja existência verdadeira não há qualquer prova palpável. É uma ilusão produzida pela linguagem – uma espécie de alucinação intelectual”.

Freud levou anos plantando suas idéias na cultura ocidental, e muita gente acreditou nele, e gente importante, formadora de opinião, a tal ponto que hoje somos quase todos freudianos. Segundo Webster, o que ele queria mesmo era notabilidade. Seu erro foi querer que fosse ciência um conjunto de idéias improváveis e especulativas acerca do comportamento humano, muitas das quais só podem ser pensadas dentro da religião e da arte, não dentro da ciência. Outro engano foi o fato de a maioria das doenças que ele diagnosticou como histeria “na verdade vinha de males orgânicos que escaparam à identificação do próprio Freud e da medicina do século XIX como um todo”, numa época que não havia, por exemplo, o eletroencefalograma.

Hoje, nem mesmo os freudianos levam a sério o conceito de histeria. Muita coisa mudou dentro da Psicanálise desde seus primeiros fundamentos. O próprio Freud fez várias mudanças sempre que se defrontava com erros gritantes, não para corrigir o erro em si, mas para não ser flagrado como charlatão. Mas na evolução da teoria, os maiores contribuintes para um verniz mais aceitável, partindo para uma concepção mais literária, de criação poética, e até terapêutica, psicológica, segundo Webster, foram seus seguidores.

Entre os discípulos, no entanto, há um em especial que Freud queria adotar como seu sucessor, mas este era esperto demais para se submeter à falácia do pai da psicanálise e se rebelou para criar a sua própria teoria, que vem rivalizando com a de Freud até hoje. Trata-se de Carl Gustav Jung. No fim de sua relação com Freud, Jung escreve-lhe uma carta que demonstra claramente o conflito entre os dois.

“Posso lhe dizer algumas palavras com toda a seriedade? Admito a ambivalência de meus sentimentos para com você, mas estou inclinado a adotar uma visão honesta e absolutamente franca da situação. (...) Eu salientaria que sua técnica de tratar seus alunos como pacientes é um erro crasso. Dessa maneira, você gera filhos escravos ou bonecos (Adler-Stekel e todo o bando insolente lançando agora seu peso em Viena). Sou objetivo o bastante para ver por trás do seu truquezinho. Você anda por aí bisbilhotando todas as ações sintomáticas em sua vizinhança e com isso reduzindo todos ao nível de filhos e filhas que, enrubescidos, admitem a existência de seus erros. Enquanto isso, você fica firme no alto como o pai, bastante assentado. Por pura obsequiosidade, ninguém ousa puxar o profeta pela barba e perguntar de uma vez por todas o que diria a um paciente com a tendência de analisar o analista em vez de a si mesmo. Certamente, você lhe perguntaria: ‘quem é o demente aqui?’.

Como vê, meu caro professor, enquanto lançar mão desse material, pouco estou ligando para minhas ações sintomáticas; elas se reduzem a nada comparadas ao brilho no olho do meu irmão Freud. Não sou nem de longe neurótico – bato na madeira! Submeti lege artis et tout humblement à análise e estou muito melhor por isso. Você sabe, claro, até onde chega um paciente com a auto-análise; não sai de sua neurose – exatamente como você. Se algum dia se livrar inteiramente de seus complexos e deixar de representar o pai para seus filhos, e em vez de apontar o tempo todo para os pontos fracos deles, der uma boa olhada em si mesmo para variar, aí eu me corrigirei e ao mesmo tempo perderei o hábito de vê-lo com ambivalência. Ama os neuróticos o bastante para identificar-se sempre com eles? Mas talvez você odeie os neuróticos. Nesse caso, como pode esperar que seus esforços para tratar seus pacientes com tolerância e amor não sejam acompanhados de um sentimento mais ou menos contraditório? Adler e Stekel foram tapeados por seus truquezinhos e reagiram com insolência infantil. Continuarei ficando perto de você publicamente e mantendo ao mesmo tempo minhas próprias opiniões, mas em particular passarei a dizer-lhe em minhas cartas o que realmente penso sobre você. Considero essa maneira de agir simplesmente decente.”

Depois dessa carta, claro, as relações dos dois azedaram de vez, e Freud reuniu todas as suas forças para expulsar o discípulo rebelde, “brutal e hipócrita”, segundo ele mesmo, da confraria psicanalítica. No dia 6 de março de 2006 foi celebrado o sesquicentenário do nascimento de Sigmund Freud. Uma coisa não se pode negar: quem leu Interpretação dos sonhos sabe que não pode desprezar o poder de persuasão do médico austríaco. E se sua teoria não serve para curar doenças da alma, é útil ao menos para aliviar o estresse da vida moderna, ou rearranjar a consciência, como literatura de alcances abissais.

A ARTE DE FIAR A PALAVRA

“Texto” em latim é “tecido”, e “palavra”, portanto, é o fio que tece a alma. Desde as primeiras letras, o homem já havia entendido isso, e a noção de que o conhecimento, a verdade e o comprometimento moral da humanidade estão intimamente ligados a esse manto vem de longe. Na Grécia antiga, prova-se isso pelo mito de Atena, a deusa da sabedoria e da fertilidade. Atena é exímia tecelã, a mais primorosa, a perfeita fiadora, a mais inteligente das deusas, filha predileta de Zeus, intocada, e isenta de repreensões pelo deus dos deuses.

Em Odisséia, Homero registra Atena como a guardiã da justiça, a protetora dos justos. E o que são as leis humanas senão palavras? Atena está presente nos momentos mais críticos de Ulisses. Está de igual modo sempre ao lado de Penélope, a esposa fiel do solerte herói. Quando este estava ausente, a casa de Penélope vivia cheia de pretendentes atrevidos, que queriam se casar a qualquer custo com a bela senhora. O que ela fazia para se proteger, à espera de seu marido? Dizia aos homens que escolheria um pretendente assim que terminasse de tecer um tapete, e todas as noites desfazia tudo que já havia tecido.

O que é isso senão a astúcia da palavra? Os homens confiavam nela, acreditavam naqueles fios, que eram apenas metáforas para uma enganação, justa, diga-se de passagem; afinal, Atena não dá ponto sem nó. O que Penélope fazia, na verdade, era uma espécie de esboço do que hoje se pode chamar de “conversa fiada”. Mas em seu caso, muito bem resguardada pela deusa, que em latim é chamada de Minerva, sendo ela responsável pelo voto que leva o seu nome, desde o julgamento de Orestes, que fora absolvido pela deusa de brilhantes olhos, quando a votação estava empatada.

Quando digo “confio na tua palavra”, quero dizer que minha consciência se liga à tua pelos fios que tu tens, cuja qualidade acredito ser boa e não vai permitir que esses mesmos fios se quebrem. Mesmo sendo falsa tal proposição, o verbo “confiar”, que vem do latim “fido” (“fidare”, fiar, confiar) e não do latim “filo” (“filare”, fiar, tecer) tem lá seu parentesco com o tecido da palavra. Afinal, a palavra de Deus também é fio, e quem a retém como verdade, é porque antes de reter o fio, retém a fé (“fides”).

sábado, 18 de agosto de 2007

LEITURA DA LEITURA: A RELEITURA LETRADA






























O mundo da leitura é sempre um desdobramento. Quanto mais se lê, mais se descobre a leitura dos outros, o caminho percorrido por determinadas pessoas, autores, filósofos, poetas, romancistas. Dos menores aos centenários. 

É a floresta do conhecimento diante do leitor, que ás vezes caminha apenas ao lado dela, mas há muitos que adentram a espessa mata, se perde, se acha, abre caminhos, refaz picadas, e assim segue a jornada de prazer e arduidade.

Um sujeito bem intencionado, mas desavisado, corre o risco de ver a máxima usada por Maquiavel, em O Príncipe, como um pensamento original do gênio florentino. “O povo é mais propenso ao mal do que ao bem”. É só ler o Antigo Testamento – aliás, ali está a fonte de parte considerável da cultura ocidental; a outra sedimenta-se na Grécia, ou melhor, no Mediterrâneo – e verá a face hereditária da condição humana.

Quando Moisés já estava a caminho da Terra Prometida e parou no Monte Sinai para falar com Deus, o povo de Israel ficou no pé da montanha, acompanhado de Arão, o orador da turma, irmão de Moisés. 


O fato é que o sábio israelita demorava demais lá em cima, e o povo já se impacientava cá embaixo. Foi quando o rebanho de dura cerviz reclamou para Arão, dizendo que Deus não podia fazer aquilo com eles, que deveria tê-los deixado sofrendo na escravidão do Egito, que ninguém merece, que o deserto é assaz penoso. O povo encheu tanto o saco de Arão que este resolveu fazer um bezerro de ouro para ser adorado.

Resultado: Deus ficou furioso. Moisés suou para acalmar a fúria divina, e ao descer deu um esporro considerável em seu irmão. “Que te fez este povo, que trouxeste sobre ele tamanho pecado?”, pergunta, indignado. “Tu sabes que o povo é propenso para o mal”, replica Arão.

Frases e falas que viram títulos, máximas que viram versos, trechos alhures que se tornam canções populares, e aí, para descobrir a fonte é preciso um mergulho na arquegenealogia do saber. Do Manifesto comunista, de Marx e Engels, Marshal Berman retirou a observação “Tudo que é sólido desmancha no ar” para o título de seu livro.

Alguém que não conheço (sendo eu ignorante por demais), traduziu do grego o primeiro aforismo de Hipócrates para o latim: “Ars longa, vita brevis”, “a arte é longa e a vida é breve”, que Goethe usou em seu Fausto, “Deus! Como a arte é longa/ E tão breve a vida!”, que Joseph Conrad também usou, e até Chico Buarque, numa canção, “Longa é a arte, tão breve a vida”.

Em Odisséia, Homero conta a história do triângulo amoroso entre Afrodite, seu marido, Hefesto (o gênio manco) e Ares, o deus sanguinolento, amante da voluptuosa deusa. Quando Hefesto pegou os dois na cama, genial armador, deus do fogo e das artimanhas, conhecedor de todos os nós e truques, ele prendeu Ares em correntes impossíveis de serem cortadas ou desatadas por outrem.

Os deuses não costumam se meter nos negócios de seus colegas, mas Posídon, o Sacudidor dos mares, quis ajudar Ares, e pediu pela libertação do guerreiro, sob a condição de restituir ao deus cambeta, mas valente e gênio, todos os presentes que ele havia dado à sua esposa pérfida.


Hefesto concordou em libertar Ares, mas sobre Afrodite, deixou escapar um epíteto pouco elogioso: “Pode ser bela, mas não tem vergonha”. E daí provavelmente nasceu o título da peça de Nelson Rodrigues, “Bonitinha, mas ordinária”.

Renato Russo copiou ipsis litteris Camões, e repassou um trecho das Cartas aos Coríntios, de Paulo, para compor uma deliciosa canção.

Coríntios: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine”.

Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente;/ É dor que desatina sem doer.”

Já Renato, todos já sabem, e cantam e choram, relembram, relêem e não se esquecem.

Cazuza fez um blues melífluo chamado Só as mães são felizes, em que diz: “Reparou na inocência cruel das criancinhas, com seus comentários desconcertantes?”. Não é absurdo dizer que tal frase é uma releitura de Nietzsche. 


Em Assim Falou Zaratustra, o filósofo alemão comenta: “Gosto de estar deitado aqui, onde as crianças brincam (...). Inocentes são elas, mesmo em sua maldade”. 

Há uma conotação profunda nessas duas frases, de algo que nasce e que, para crescer, não há como escapar dos primeiros passos, carregados de uma valoração perigosa, como são as crianças na sua inocência. 

Cazuza também sabia das coisas.

Ler é isso. É retomar o fio da meada e mandar ver, até que se produza algo diferente. Mas que o autor nunca se esqueça de que a criação deve estar amarrada em alguma solidez.

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