sábado, 21 de fevereiro de 2009

A ARTE DE ESCREVER: frases e ensinamentos de autores muito sabidos

Ernesto Sábato

“É impossível falar ou escrever sem metáforas, e quando parece que o fazemos é porque se tornaram tão familiares que são invisíveis.”

In: O escritor e seus fantasmas


Charles Baudelaire

“Começo de um romance, principiar um assunto seja em que ponto for, e, para ter desejo de ir ao fim, começar por frases muito belas.”

In: Meu Coração desnudado


Edgar Allan Poe

“A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos.”

Filosofia da Composição, In: Poemas e ensaios


Ezra Pound

“Os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente. Quer dizer, que mantêm a sua precisão, a sua clareza.”

“Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai.”

“O bom escritor escolhe as palavras pelo seu ‘significado’. Mas o significado não é algo tão definido e predeterminado como o movimento do cavalo ou do peão num tabuleiro de xadrez. Ele surge com raízes, com associações, e depende de como e quando a palavra é comumente usada ou de quando ela tenha sido usada brilhante ou memoravelmente.”

“O Domínio da técnica não é alcançado sem pelo menos certa persistência.”

In: O ABC da Literatura


J. W. Goethe

“Não é a linguagem em si e para si que é exata, hábil, graciosa, mas o espírito que nela toma corpo. E assim não depende de nós dar aos nossos contos, discursos, ou poemas as características desejáveis. A questão aqui é se a Natureza deu as características espirituais e morais. As espirituais: o poder de intuição e de penetração. As morais: o poder de o artista afastar os maus demônios que o poderiam impedir de prestar homenagem ao Verdadeiro.”

In: Máximas e reflexões


Machado de Assis

“A primeira condição de quem escreve é não aborrecer.”

“O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

In: Pensamentos e reflexões de Machado de Assis (Seleção e organização: Gentil de Andrade)

Fernando Pessoa

“De nada serve o simples ritmo das palavras se não contêm ideias”.

“Ninguém pode esperar ser compreendido antes que os outros aprendam a língua em que se fala.”

In: Alguma prosa


Friedrich Nietzsche

“Um bom escritor não tem apenas o seu próprio espírito, mas também o espírito de seus amigos”.

“Quando o autor nega seu talento para se equiparar ao leitor, comete o único pecado mortal que este jamais lhe perdoa; caso o perceba, naturalmente. Pode-se dizer tudo quanto é ruim de um homem; mas na maneira de dizê-lo devemos saber restaurar sua vaidade.”

“É frequente o leitor e o autor não se entenderem porque o autor conhece bem demais o seu tema e o acha quase enfadonho, dispensando os exemplos que conhece às dúzias; mas o leitor é estranho à matéria, e a considera mal fundamentada se os exemplos lhe são negados.”

In: Humano, demasiado humano


Ernest Hemingway

“A gente escreve melhor, por certo, quando está apaixonado.”

“O futuro do escritor ... Deveria enforcar-se, por haver descoberto que escrever bem é tremendamente difícil. Depois, deveria ser esfaqueado sem piedade e obrigado pelo próprio ser a escrever tão bem quanto possível durante o resto da vida. Pelo menos teria, para começar, a história do enforcamento.”

“Se um escritor deixa de observar, está liquidado.”

In: Escritores em ação (Entrevistas da Paris Review; Coordenação: Malcolm Cowley)

Lawrence Durrel

Para escrever bem:

“Não tem nenhuma importância que se fracasse uma, duas, três vezes, mas é de vital importância que a água encontre seu próprio nível e que se faça o melhor que se puder com as forças que lhe são dadas. É perder tempo lutar por coisas fora do nosso alcance, da mesma maneira que é absolutamente imoral ser indolente a respeito das qualidades que se tem.”

In: Escritores em ação (Entrevistas da Paris Review; Coordenação: Malcolm Cowley)


Marcel Proust

“Há somente uma maneira de escrever para todos, que é escrever sem pensar em ninguém, para aquele que tem algo de essencial e profundo.”

“O bom senso dos artistas, o único critério da espiritualidade de uma obra, é o talento.”

In: Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura


Jean-Paul Sartre

OBS: Aqui Sartre fala do escritor engajado, mas serve para quem quer escrever bem.

“Nunca dizer: ‘bem, terei no máximo três mil leitores’; mas sim, ‘o que aconteceria se todo o mundo lesse o que eu escrevo?’”

A objetividade do bom escritor:

“As palavras, como diz Brice-Parain, são ‘pistolas carregadas’. Quando fala, ele atira. Pode calar-se, mas uma vez que decidiu atirar é preciso que o faça como um homem, visando o alvo, e não como uma criança, ao acaso, fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir os tiros.”

“Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa. Mas ele deve passar despercebido. Já que as palavras são transparentes e o olhar os atravessa, seria absurdo introduzir vidros opacos entre elas.”

“Escrever é, pois, ao mesmo tempo desvendar o mundo e propô-lo como uma tarefa a generosidade do leitor. É recorrer à consciência de outrem para se fazer reconhecer como essencial à totalidade do ser; é querer viver essa essencialidade por pessoas interpostas.”

“É com a palavra que pensamos. Teríamos de ser muito pretensiosos para acreditar que contemos dentro de nós belezas inefáveis que a palavra não é digna de exprimir.”

In: Que é a literatura?


Henry Miller

“Examino com assiduidade o estilo e a técnica daqueles que uma vez admirei e cultuei (...). Imitei todos os estilos na esperança de descobrir a chave do segredo torturante da arte de escrever (...). Eu fracassei. Percebi que não era nada. (...). Foi nesse ponto, em meio à estagnação do mar dos Sargaços, por assim dizer, que realmente comecei a escrever. Comecei do nada, lançando tudo ao mar, mesmo aqueles a quem mais amava”.

In: A sabedoria do coração

Gore Vidal

“A qualidade da frase é tudo o que um escritor tem de seu.”

“Inteiramente absorvido por seu assunto, o gênio é um inovador natural – fato que deve ser enlouquecedor para o escritor comum, que, simplesmente ambicioso, é obrigado a abordar a literatura do exterior, na esperança de que o estudo da forma de uma obra-prima e a análise de seu conteúdo lhe deem condições de reconstituir o princípio de sua elaboração, para então criar paródias ou, se for furiosamente ambicioso, algo ‘novo’ (reorganizando os componentes).”

In: De fato e de ficção


Gabriel García Márquez

“A primeira frase pode ser o laboratório para estabelecer muitos elementos do estilo, da estrutura e até do comprimento do livro.”

“Hemingway nos ensinava muita coisa, inclusive a saber como um gato dobra uma esquina.”

In: Cheiro de goiaba: conversas com Plínio Apuleyo Mendoza

Júlio Cortázar

“Um escritor argentino muito amigo do boxe me dizia que, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute. Isto é verdadeiro, pois o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto um bom conto é incisivo, mordaz, sem quartel desde as primeiras frases. Não se entenda isto demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto e vários dos seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na realidade, já estão minando as resistências mais sólidas do adversário.”

“Os contistas inexperientes costumam cair na ilusão de imaginar que bastará pura e simplesmente escrever um tema que os comoveu para comover por sua vez os leitores. Incorrem na ingenuidade daquele que acha seu filho belíssimo e sem hesitar acredita que os outros o consideram igualmente belo. Com o tempo, com os fracassos, o contista capaz de superar esta primeira etapa ingênua aprende que em literatura não bastam as boas intenções.”

In: Obra crítica 2


Autran Dourado

“‘O estilo é o homem’ foi uma frase que quase botou a perder a maioria dos escritores brasileiros, os de Minas sobretudo, que quiseram fazer ‘estilo’, esquecidos de que na verdade ‘o estilo é o assunto ou a matéria.’”

“O caso mais curioso de ‘estilismo’ que conheço, porque radical, é o de Dalton Trevisan, escritor curitibano de merecido êxito, mas em quem o ferrete disciplinador está presente, cuja influência mineira testemunhei e segui de perto. Mas com quem ele aprendeu isso? Com (...) Otto Lara Resende, seu amigo pessoal, a quem Dalton Trevisan trazia seus contos (...) quando vinha ao Rio, pedindo ao mineiro que castigasse os seus originais, que fosse ‘cruel’, como ele dizia. De posse e ainda sangrando das corrigendas e sugestões sádicas, voltava para a friorenta Curitiba, onde ia lamber prazerosamente as feridas. Lá, na solidão-solitude, com o frio de quebrar orelha e gretar os lábios, misturava aquilo tudo na cabeça, sacolejava com sal de frutas, e depois apresentava os resultados, às vezes excelentes.”

In: Poética do romance: matéria de carpintaria

Gustave Flaubert

“Trabalhe, medite, medite acima de tudo, condense seu pensamento, você sabe que os belos fragmentos não são nada. A unidade, a unidade, tudo está aí! O conjunto, eis o que falta a todos os de hoje, tanto nos grandes quanto nos pequenos. Mil passagens bonitas, mas não uma obra.”

“Todo o talento de escrever não consiste senão na escolha das palavras.”

“A biblioteca de um escritor deve se compor de cinco a seis livros, fontes que é preciso reler todos os dias.”

“O que há de mais mal construído do que tantas coisas de Rabelais, Cervantes, Molière e Hugo? Mas que murros súbitos! Quanto poder numa só palavra! Quanto a nós, é preciso empilhar pedra sobre pedra para construir nossa pirâmide que não chega a um centésimo das deles, que são feitas de um bloco só.”

In: Cartas exemplares

Para finalizar:

“Nenhum pensamento humano pode prever agora a que deslumbrantes sóis psíquicos desabrocharão as obras do futuro. Enquanto esperamos, vivemos num corredor cheio de sombras; tateamos nas trevas. Falta-nos uma alavanca; a terra desliza sob os pés; o ponto de apoio nos faz falta a todos, literatos e escrevinhadores que somos. Para que serve isto? A que necessidade responde esta tagarelice?”

Gustave Flaubert, in: Cartas exemplares

OBS: Minha amiga Luciana Feijó, autora do blog Purpurina de Rua, enviou uma ótima contribuição, que segue abaixo:

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes.

Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.

Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

Graciliano Ramos, acho que em Caetés.

Serviço

Alguns dos livros citados estão com edição esgotada, mas podem ser encontrados em sebos. Na lista abaixo, seguem os que podem ser comprados na Livraria Cultura.

Título: Poemas e ensaios
Autor: Edgar Allan Poe
Editora: Globo, 1987, 297 páginas
Gênero: Teoria e crítica literária
Preço: R$ 36,00

Título: O ABC da Literatura
Autor: Ezra Pound
Editora: Cultrix, 1995, 218 páginas
Gênero: Teoria e crítica literária
Preço: R$ 27,00

Título: Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura
Autor: Marcel Proust
Editora: Iluminuras, 1988, 185 páginas
Gênero: Teoria e crítica literária
Preço: R$ 47,00

Título: Que é a literatura?
Autor: Jean-Paul Sartre
Editora: Ática,1993, 231 páginas
Gênero: Teoria e crítica literária
Preço: R$ 49,90

Título: Obra crítica 2
Autor: Júlio Cortázar
Editora: Civilização Brasileira,1999, 368 páginas
Gênero: Teoria e crítica literária
Preço: R$ 56,00

Título: Cartas exemplares
Autor: Gustave Flaubert
Editora: Imago, 2006, 258 páginas
Gênero: Literatura, Correspondências
Preço: R$ 53,00

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O VELHO E BOM CONY

Christian Wirthmann
Cony no programa Letra Livre, da TV Cultura, edição que vai ao ar no começo de março

Sempre admirei a inteligência de Carlos Heitor Cony. É verdade que leio mais suas crônicas na Folha de S. Paulo do que seus romances, mesmo porque, durante muito tempo ele escreveu quase todo dia no jornal dos Frias. Mas os artigos e crônicas são o suficiente para sentirmos sua veia iconoclasta e o aguçado senso de humor, misturado a uma auto-ironia que nos mata de rir.

Tenho mais a dizer sobre Cony, mas o que tenho a dizer pode ser adiado sempre porque é muito pouco. Para compartilhar as tiradas hilárias de Cony, se autoflagelando, rindo de si mesmo, abro parte da cortina de seu texto publicado nesta sexta-feira (20/02), no Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo.

O texto, intitulado O Mosteiro dos Tijolos de Feltro, referente ao um quadro que pintou, segundo ele, fala de suas peripécias na arte de ganhar a vida, começando como pianista de inferninho, aos 20 anos, depois passando a escrever literatura e para o jornalismo.

Há muita invenção nessas histórias, claro. Mas a delícia do texto não está completa se não imaginarmos Cony atuando em cada cena.

Em razão de todo o seu talento e sua capacidade de arregaçar as mangas para qualquer coisa, ele diz:

“Nunca precisei rolar pelas sarjetas - profecia de um mestre que perdeu a paciência comigo por causa de umas equações de 2º grau e me profetizou um futuro negro, esmolando pão, dormindo sob marquises, coberto por jornais da véspera. Essa imagem às vezes retorna ao meu inconsciente: são os únicos momentos em que me considero um vencedor. Pelo menos até agora, ainda não cheguei a esse estágio de miséria.”

Em trecho mais adiante:

“Nunca se deve confiar em quem já tocou piano e escreveu tanto para ganhar o pão de cada dia. Tempos atrás, aproveitando um recesso doméstico -fui operado nas cordas vocais e tive que passar duas semanas na encolha- dei para pintar. Isso mesmo: pintar quadros.

Pegava pincéis e espátulas, esparramava cores aqui e ali, depois assinava e datava para que a posteridade soubesse quando e onde havia feito uma obra-prima. Borrando aqui e ali fui acumulando obras de arte que transbordaram de meu apartamento e vieram comigo ao trabalho.

Um dia - que ainda será celebrado na história universal como um marco memorável da estupidez humana -, vendi um quadro a um desprevenido. Por maior que fosse minha decadência moral e humana, senti algum remorso. À noite, rondei a casa do camarada, para ver se ele havia sido expulso do lar.

Cheguei a imaginá-lo sentado na calçada, o quadro entre as pernas, meditando sobre a besteira que fizera e que lhe provocara o exílio. Alguma coisa de inacreditável deve ter acontecido, pois o cara foi aceito em casa, por sua mulher, filhos e agregados.”

Ultimamente seus textos andavam meio chatos, mas este trouxe de volta o velho e bom Cony.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O LEITOR: a literatura no banco dos réus

Winslet: seu corpo, mesmo com os sinais do tempo e da vida real, é um belo poema

Todo leitor sabe, ou deveria saber, que a literatura é carga explosiva. Para cultivar a arte da citação, lembrando aqui Ezra Pound, literatura “é linguagem carregada de significado em seu grau máximo.” Essa carga de significação explode sempre no encontro sinestésico do leitor, procurando atingir todos os sentidos ao mesmo tempo.

Em função disso, o texto literário se inscreve no campo da subversão, do perigo iminente. Com essa ideia na cabeça, fica fácil ver O leitor, filme de Stephen Daldry, com Kate Winslet e Ralph Fiennes, e entender por que os livros estão no cerne do drama dos dois personagens principais.

Adaptada do livro homônimo do alemão Bernhard Schlink e ambientada na década de 1960, a história é simples: Michael (David Kross/Ralph Fiennes) é um garoto de 15 anos que passa mal na volta da escola para casa e Hannah (Winslet) o socorre na casa dela. Ela, 20 anos mais velha do que ele, mora sozinha, é bela, sedutora e misteriosa. Os dois passam a ter um caso, que dura o verão todo.

Durante esse período, o garoto lê para ela o que há de melhor da literatura: Homero, Rainer Maria Rilker, Pasternak, Dostoievski, Lesser, Goethe, Shakespeare etc. É a primeira parte da trama, em que o destino dos dois se cruza e a literatura aparece como elemento de desejo e prazer. Ele gosta de ler, ela gosta de ouvir.

O corpo e o livro

O prazer da leitura alia-se aí ao do sexo, ao das descobertas. Tirar a roupa – mostrar o corpo nu, fazer amor – e virar as páginas de um livro para ler seu conteúdo polissêmico se equivalem.

A descoberta ou o re-encontro da beleza das palavras, para ela, bem como a descoberta da beleza do corpo feminino e do gozo oferecido, para ele, são prazeres harmônicos. Os dois se deliciam.

Mas no jogo literário, as descobertas se fazem num labirinto que também oferece resistência, cria segredos. Em troca de certas revelações, escondem-se peças fundamentais do jogo. O leitor precisa estar atento. No jogo do sexo e das relações amorosas acontece algo semelhante. E é aí que se faz o drama.

Logo no começo do filme, o professor de literatura de Michael, diz que, na tradição da literatura ocidental, a trama traz sempre um segredo depositado em um ou mais personagens, que vai sendo desvendado aos poucos, quer para o bem quer para o mal.

É nesse modelo que se encaixa o papel da literatura no filme, tanto como arte quanto como metáfora dos microdramas de cada personagem. Sabemos que a literatura é transgressora de todo pensamento estabelecido, mas em O leitor, acrescenta-se a isso um novo componente: a insígnia do mal.

Hannah gostava de ouvir a leitura que Michael fazia para ela, sim. Havia, no entanto, outro componente: ela não sabia ler. Quando os dois se separaram, alguns anos depois, com Michael já homem feito, advogado formado, ele a encontra como ré, no tribunal que julgava os criminosos do Holocausto. O drama de Michael começa aí, mas o de Hannah já existia há muito tempo.

Michael fica sabendo que Hannah foi guarda em Auschwitz. Durante o Holocausto, ela era encarregada de selecionar e enviar as prisioneiras à câmara de gás, enquanto as outras ficavam nos alojamentos trabalhando, conforme a história que todos conhecem e que os judeus jamais deixarão que se perca no tempo ou mofe nos livros didáticos.

O filme traz pelo menos três dramas: o do rapaz que descobre que a mulher que o fez homem, que o despertou para o mundo das sensações físicas de prazer, é ex-carrasco do Holocausto; o da mulher que é analfabeta e não quer revelar esse segredo; e o das vítimas do Holocausto, o drama dos judeus, sempre.

Na voz das meninas-cadáveres

No decorrer de seu julgamento, as testemunhas revelam outro segredo de Hannah: enquanto escolhia quem iria para a morte, ela selecionava algumas meninas para ficar lendo para ela. Aqui a literatura entra no rol da culpa. A literatura e o mal se tornam cúmplices.

A acusação deixa no ar o prazer mórbido da ré, que se abstrai da situação perversa para sentir, na voz das meninas-cadáveres, o efeito gozoso de seu objeto de desejo, o grau máximo do prazer da leitura.

Alguém lembra que imaginava que o ato da leitura fosse sinal de que havia um sentimento de humanidade em Hannah, mas o que se viu foi o comportamento atroz de um carrasco, a frieza do emissário da morte.

Alguém interpretou mal a literatura, achando que fosse o instrumento ajustador das atrocidades do mundo, além de julgar que o que é humano é bom e só a monstruosidade é capaz de fazer o mal. Hitler também lia. Joseph Goebbels tinha a inteligência e a sensibilidade refinadíssimas e lia a nata da literatura.

Literatura e morbidez podem andar juntas, sim, e não só na ficção. Mas, também, qualquer coisa pode ser parceira da morte, como o prazer, a felicidade, o encantamento, a alta dose de otimismo. Desconfiemos sempre do otimismo como palavra de ordem. Tudo pode ser objeto do sentimento mórbido.

Um parêntese para Winslet, ou o drama maior de Hannah

Kate Winslet está deslumbrante no filme. Tão simples, tão marcadamente mulher. Seu corpo, com todos os sinais do tempo e da vida real, equivale a um belo poema. Na interpretação, seu olhar de tristeza revela um pouco o drama maior da personagem.

Mas não nos enganemos. O drama maior de Hannah não é o fato de ter matado judeus e não conseguir conviver com a carga da culpa. O que ela esconde de verdade, e não revela nem sob a ameaça da pena de prisão perpétua, é a sensação de não ser ninguém por não saber ler.

Aliás, há uma fina sugestão de que o fato de não saber ler determinou seu ingresso na carreira de carrasco, o que nivela todos, instruídos e ignorantes, na atitude do extermínio. Ninguém é inocente. Todos são humanos.

Nesse caso, a literatura se redime. É por causa desse prazer que Hannah quer aprender a ler, e o faz da maneira mais literária possível, por si mesma, como é em si, em sua maior parte, o texto literário.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

MILTON HATOUM LANÇA A CIDADE ILHADA

Julio Bittencourt/Folha Imagem
No escritório de sua casa, em São Paulo, Hatoum fala à Folha de S. Paulo

Um dia desses ainda estudo o valor da morte na obra de Milton Hatoum, em que a morte é um personagem importante, age sutilmente e mata todo mundo. Quer dizer, todos já estão mortos no momento da narrativa, em que só o narrador mesmo sobra para contar a história.

Essa presença da morte na teia da trama também existe em Machado de Assis, como em Dom Casmurro e, claro, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Mas isso é assunto para outra hora. O que quero postar é a notícia da Folha de S. Paulo deste sábado (14/02/2009), segundo a qual, nasce mais um livro de Hatoum. Dessa vez, um livro de contos, chamado A Cidade Ilhada, com lançamento previsto para a semana que vem.

É ler para sentir de novo. Na entrevista concedia para a Folha, Hatoum diz que entre seus projetos para breve estão um novo romance, que não será ambientado em Manaus, duas coletâneas de crônicas, além de planejar “um espaço para aulas de literatura: ‘É uma edícula que aluguei para isso. Vai ser a “edícula” do saber’, brinca.”

Ou Milton Hatoum não quis dar mais detalhes, ou o repórter não quis perguntar sobre o molde dessas aulas de literatura. Será um curso do tipo oficina literária, ou do tipo Casa do saber (espaço com cursos regulares de diversas áreas do saber, como filosofia, religião e literatura, que cobra um preço altíssimo), com cujo nome ele brinca na declaração acima?

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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

BIOGRAFIA MÍNIMA: Os sapatos de Orfeu, a vida de Carlos Drummond de Andrade

José Maria Cançado, respeitado jornalista e escritor que morreu em 2006, foi o autor da biografia de Carlos Drummond de Andrade, Os Sapatos de orfeu, de 1993. Li esse livro em 2003 e, no decorrer da leitura, fiz algumas anotações.

Agora, por falta de tempo, talvez, mas, principalmente, por estar distante da época da leitura que fiz, repasso as anotações sobre o livro, que não deixam de retratar, pela superfície, claro, a vida do poeta mineiro.

Primeiros anos

Os sapatos de Orfeu, biografia de Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), Carlito.

Natural de Itabira, Minas Gerais. Filho de Julieta Augusta Drummond e Carlos de Paula Andrade.

Drummond tinha uma relação tacitamente conflituosa com o pai, a quem via e tinha como homem áspero no trato com os filhos. A mãe era toda doçura.

O próprio Drummond virou mito, em relação à sua suposta aspereza e da falta de calor humano, por ser tímido e reservado.

Aos 13 anos de idade entra para o Grêmio Dramático e Literário Arthur Azevedo. Na sua adolescência, Carlito, como era chamado, foi simpatizante dos alemães. Torcia para eles na Primeira Guerra Mundial.

Aos 16 anos, foi estudar em Friburgo, Rio de Janeiro, no Colégio Anchieta. Em 1919, aos 17 anos, foi expulso do Colégio Anchieta por “‘insubordinação mental’”. Logo depois de voltar para Itabira, se muda para Belo Horizonte, com a família. Decisão brusca do pai, que ficou sem explicação.

Amizades e amores

Em 1922, Drummond conhece Pedro Nava. Formaram uma turma que se encontrava no Bar Estrela. Faziam parte dessa turma Alberto Campos (um dos mais cultos do grupo, segundo Cançado, mas morreu cedo, aos 28 anos de idade), Emílio Moura, Arilton Campos, Rodrigo Mello Franco de Andrade e Eduardo Frieiro.

Na Rua da Bahia, “ficavam os outros dois pontos que completavam a constelação do Estrela – a Livraria Alves e o Cine Odeon. Na Livraria Alves eles iam todas as tardes para filar a leitura de alguns livros (...) e para socializar as ideias e as experiências.”

Os amigos eram poucos, por sua própria determinação, mas intensos. A tríade mais representativa se fazia com as correspondências entre Mário de Andrade, Drummond e Manuel Bandeira.

Nessa mesma época, mas fora da turma, Drummond conheceu Dolores de Morais, que viria a ser sua mulher.

Uma coisa interessante sobre a vida particular de Drummond. Ele era namorador, segundo Cançado. Teve inúmeros casos de amor. Fato no mínimo exótico para uma pessoa tímida e arredia como Drummond. Entre suas amantes estavam Célia Neves (que mais tarde se casaria com Poty Lazzarotto), Eneida de Morais e Lygia Fernandes, para ficar no registro.

Da timidez de Drummond e sua domesticidade

Drummond era mesmo muito reservado em relação à sua vida particular. Ao enviar o convite de casamento aos colegas, depois de quatro anos de namoro, todos ficaram surpresos, porque sequer sabiam que ele tinha namorada. Estilo mais ‘mineirinho’ do que este não deve existir.

Segundo Cançado, “(...) defendia sua domesticidade com uma tenacidade que beirava à violência contra si mesmo, o que fazia com que ele tomasse uma simples visita pela mais ameaçadora das perseguições.”

Paternidade

Em 1928, nasce Maria Julieta, sua única filha. Neste mesmo ano é publicado pela primeira vez o poema No meio do caminho tinha uma pedra, na Revista Antropofagia.

Articulações

Em 1930, Carlos Drummond estava com os revolucionários, em Minas gerais, que ajudaram a pôr Getúlio Vargas no poder. Foi por isso que, em 1934, Gustavo Capanema, o novo ministro da Educação e Saúde, convidou Drummond para ser seu chefe de Gabinete, no Rio de Janeiro.

Mesmo assim, Drummond não se achava no Paraíso com a proposta, ainda que ela poderia tirá-lo das dificuldades financeiras em que se encontrava. Na época, aos 32 anos, ele escreveu: “‘Sem nenhum problema resolvido, sequer colocado.’” Mas aceitou a proposta, depois dos argumentos de seu amigo Cyro dos Anjos. Foi morar no Rio de Janeiro como funcionário do Governo.

“Drummond com certeza não era ‘intransigente defensor’ de grupo nenhum. Mas tinha, sem dúvida, uma intransigente antipatia pela pregação anticomunista de Alceu Amoroso Lima [fervoroso líder católico, anticomunista, um dos mais respeitados intelectuais do país, na época, que escrevia sob o pseudônimo de Tristão de Athayde].”

Chegou a pedir demissão de seu cargo – mas não foi aceito por Gustavo Capanema – por causa da influência de Amoroso Lima no Governo de Vargas.

Drummond era um exemplo de profissional aplicado no serviço público. "Capanema nunca deixou de dar mão forte a Drummond. Além da amizade pelo autor de Alguma Poesia, ele tinha motivos para isso: Drummond era um monstro de correção e rigor burocrático, tornando-se responsável por quase toda a condução administrativa do Ministério, (...)."

Política

Drummond milita no Partido Comunista pelo jornal Tribuna da Tarde. Mas não por muito tempo. O controle excessivo do jornal e do Partido não o deixou continuar. Essa militância foi de 23 de maio a 30 de outubro de 1946.

Por causa dessa determinação de Drummond, de sair, o Partido o execrou, e até Pablo Neruda, que havia feito questão de sair nas fotos com ele, quando passou uma semana no Brasil, em 1945, disse, depois, que “‘a América tinha dois traidores: Gonzáles Videla [o então presidente do Chile] e Carlos Drummond de Andrade.’”

O jornalista Oswaldo Peralva chegou a dizer que Drummond havia se vendido à Embaixada americana. Depois se retratou num romance chamado O retrato. Veja a que tipo de baixeza determinada categoria de jornalistas pode chegar.

Antes da queda de Getúlio, com Luís Carlos Prestes ainda preso, Drummond, juntamente com Célia Alves e Oswaldo Alves, entrevistara o líder comunista na cadeia, no dia 15 de outubro de 1945. Encontro marcado em função da admiração de Drummond à lógica de Prestes, mas sem se deixar entregar a ela.

Relações

Drummond conhece João Cabral de Mello Neto, em 1940, quando este tinha 20 anos de idade.

Drummond também era leitor de Kierkegaard, “que ele leu até os dias finais de sua vida.”

A Drummond não agradavam os concretistas, ou melhor, o movimento não lhe agradou. Achava um troço meio pobre. Nem Drummond aos concretistas, criticando-o quando podiam.

Mário Faustino (promissor poeta piauiense que morreu jovem, aos 32 anos, num acidente de avião, nos Andes, em 1962) espinafra Drummond, em sua coluna, no Jornal do Brasil, em 1957.

Literatura e erotismo

Drummond também conhecia bem os meandros do erotismo na literatura. Chegou a fazer lista bibliográfica, além de poemas, é claro, sobre o assunto para uma amiga. Entre esses poemas estão os que foram publicados postumamente, em 1992, no livro O amor natural.

Notinhas

José, seu irmão, jamais o perdoou “por ter carregado um pouco da sua vida para dentro do poema famoso – José.”

José Maria Cançado escreve um parágrafo muito bom sobre os escritores na velhice (ver página 315).

Na década de 1970, Drummond faz amizade com José Mindlin.

Em 5 de agosto de 1987, Maria Julieta morre de câncer.

No dia 17 de agosto de 1987, às 20h45, morre Carlos Drummond de Andrade.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A MORTE PEGA CARONA COM A FAMA: Darwin, Poe, Carmen Miranda e Euclides da Cunha

Num primeiro momento, a morte é luto. Se quem morre é uma personalidade ilustre, a morte se transforma em celebração no futuro, e se junta à representação da vida, a ponto de não se distinguir nascimento e falecimento. Tudo é festa. Estranha e ambígua é a atitude humana diante dos dois extremos da existência.

Se quem morreu foi um anônimo, anonimamente federá até que sua carne e seus nervos tenham sido devorados pelos vermes, e seus ossos e cabelos se transformem em fóssil, para nunca mais ser lembrado, nunca mais ser olhado pelo outro, porque o outro, também, já terá morrido, muitas vezes, também, como um esquecido.

Em 2009, por exemplo, temos várias celebrações. Comemoram-se, entre tantos outros eventos, o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e Edgar Allan Poe, os centenários da morte de Euclides da Cunha e do nascimento de Carmen Miranda.

Se quisermos ir mais longe nesse negócio de morte e celebração, há outros nomes importantes na literatura brasileira e mundial que merecem bolo e alguns confetes, ao menos, no embalo dessa festa.

O escritor paraense Dalcídio Jurandir nasceu em 1909 e faleceu em 1979. Ele é considerado um dos grandes nomes da literatura brasileira, tendo escrito nove romances retratando a região amazônica. Entre seus livros estão Chove sobre os campos de Cachoeira (1941) e Belém do Grão Pará (1960).

O dramaturgo francês, nascido na Romênia, Eugéne Ionesco (1909 - 1994), pai do teatro do absurdo, autor de A lição das cadeiras, o escritor biográfico chileno Juan Carlos Onetti (1909 - 1994), autor de Junta-cadáveres, e o poeta grego Yannis Ritsos (1909 – 1990), autor de Ismênia, também merecem ser lembrados.

Este humilde blog não tem estrutura para publicar estudos novos sobre a obra desses importantes autores, mas fica aqui a lembrança.

Por fim, 2009 é também o ano em que a obra de Freud entra em domínio público, com os 70 anos da morte do pai da psicanálise, que faleceu em 1939, aos 83 anos. Como se sabe, 70 anos é o prazo que os herdeiros têm para usufruir dos direitos autorais de seus defuntos.

Aliando esse fato ao da reforma ortográfica, minha grande expectativa é de que A interpretação dos Sonhos, o livro seminal de Freud, aquele calhamaço publicado no Brasil pela Imago, saia do preço estratosférico para cair nas graças de meu bolso e eu, finalmente, poder tê-lo, com trema e tudo, em minha humilde biblioteca.

Vivam os anos que passam!

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

PB DESINTERESSANTE: um blog no meio da contemporaneidade

“Nesse país que ninguém lê, quem te lê?”
Antonio Abujamra, em Provocações, pergunta para Modesto Carone Netto

Ela não vive no mundo medieval, nem está com o pé nos anos setenta – marco da cultura pop –, mas se chama Laura, esta moça que assina L.C., Laura, como a musa de Petrarca e a mãe de Roberto Carlos, como tantas outras mulheres e personagens.

Allegro moderato: entre Vivaldi e Bach. No contraponto de tudo isso, corre em suas veias alguma poesia, que talvez nem ela mesma queira ver, mas, outra contradição, talvez planeje fazê-lo, optando, no entanto, pela prosa quântica, seguindo o curso do drama para o criar poético: proesia.

Além de cinéfila, do tipo que gosta de Livro de cabeceira, cultiva o espírito da boa música e da literatura, da literatura que traz, no mínimo, o prazer da leitura.

Já estudou filosofia e entrou para as estatísticas – como ela mesma lembra num post de seu blog (acesse aqui) – com a monografia As figuras de alteridade em Antonin Artaud.

Está sempre por aqui, deixando comentários mínimos. Mas também estou sempre por lá, tentando entendê-la, às vezes. Embora quase sempre o que faço seja absorver os tragos da poeticidade de seus posts, como em “pregada”:

“caminho enferrujada, não sem prazer, com muitos pregos no meu pé.”

Carrega consigo sempre um ar blaisé, um olhar de desinteresse, fingido, claro. Seu interesse pela vida é intenso. E quer demonstrar isso. Mas o faz com parcimônia, com a sutileza dos felinos.

Em seu blog, razão deste post, à semelhança de e. c. cumming, ela escreve em caixa baixa (minúsculas), sempre. Escreve textos micros, mas, como se procurasse, e talvez procure, o modo superlativo nas situações cotidianas.

Em “band-aid”, ela diz:

“aprender a fazer curativos sozinha, depois o amor e as letras, que primeiro sejam curadas as feridas.”

Em “beatles way of life”, lamenta:

"no supermercado um casal de velhinhos e o domingo.
na prateleira da seção de laticínios um pensamento perdido.
eu envelheceria ao teu lado. éramos nós e viveríamos uma linda história.
enfrentaríamos males e contas. financiaríamos a casa e os sonhos.
não fosse o resto.
resta apenas o carrinho vazio.”


Sendo fugaz, vindo no átimo do querer voltar para repensar tudo, refazer tudo, remoer cada canto da vida, ajeitar na alma cada átomo, Laura está no olho da contemporaneidade, que é sempre tudo e nada. Seu blog é para todos e para ninguém.

Mas, ainda assim, e ainda que não queira, talvez o nome revele versos trazidos pelos ventos no tempo. Poeiras. Talvez apenas alguns versos tenham cravado em mínimos grãos de palavras a intenção de seu nome. Ninguém se livra da intencionalidade do nome que tem.

Para quem se interessar, acesse o blog Superlativa (ou http://www.pbdesinteressante.blogspot.com/).

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

PÓ DE PAREDE: um livro sobre amadurecimento e amizade


Os escritores gaúchos sempre tiveram bons representantes no cenário da literatura nacional. De Simões Lopes Neto, Dyonélio Machado, Érico Veríssimo, passando por João Gilberto Noll, Assis Brasil, até chegar aos discípulos deste último, como Cíntia Moscovich, Amílcar Bettega Barbosa e Daniel Galera (paulista de 30 anos que se criou em Porto Alegre).

Além destes, nos últimos anos, do Rio Grande do Sul despontaram mais nomes que vão fazer a diferença nas próximas décadas, sem dúvida. Um exemplo bom é a jovem Carol Bensimon, nascida em 1982, em Porto Alegre, e que também fez a oficina de escritores de Assis Brasil.

Foi com prazer que li seu primeiro livro, Pó de parede (Não-Editora, 2008). São três histórias, catalogadas como novelas, mas que poderiam ser três mínimos romances, pela estruturação dos personagens dentro da trama: A caixa, Falta céu e Capitão Capivara.

As duas primeiras histórias são marcadas por um sentimento de angústia, solidão e tristeza, retratando a transição entre a infância e a fase adulta, cuja sensação de deslocamento é palpável e invade o leitor.

Na terceira, o que prevalece é o tom cômico, destoando um pouco das anteriores, sendo mesmo mais fraca que as outras, mas cumprindo o papel de fechar o livro, que parte de uma pesada carga dramática e poética para certa leveza do ser. Nesse ínterim, o deslocamento permanece.

Pó de parede é um livro sobre o amadurecimento e a amizade. Neste sentido, seria um ‘romance’ de passagem, não exatamente de formação, mas de transição. Seus personagens sofrem a dor do crescimento e da libertação das amarras parentais. Seus personagens deixam para trás a infância e a inocência, para sentir essa corrosão do novo mundo que se abre.

A caixa

Aqui, a narrativa corre entre 1991 e 2007, num tempo não-linear, mostrando a relação de três garotos, Alice, Tomás e Laura, que vivem bons momentos de amizade, na infância e na adolescência, até que nesse último ano, já um futuro distante, tudo se desconfigura.

No princípio de suas vidas, Alice e Tomás são despadronizados. Não se vestem como os demais, gostam de ouvir músicas que destoam do gosto dos outros, e por isso são excluídos pelos colegas da escola. Laura é a vizinha patricinha, a menina certinha que estuda no mesmo colégio.

É dentro desse esquema que vemos Alice como protagonista. Sua voz se sobressai. Seu ponto de vista marca a narrativa, embora ela não seja a única a narrar. Vemos Alice se transformando da infância para a fase adulta, vivendo um drama invulgar, o excesso de liberdade no seio familiar a ponto de deixá-la deslocada.

Nesta novela, as palavras vão cuidadosamente cadenciando o texto, criando um tecido espesso e firme, que busca sempre a marcação próxima da poesia, forçando o leitor a ler em voz alta. É como se a narrativa quisesse saltar das páginas para, saindo dos trilhos, ganhar o vasto mundo. É o melhor texto.

Mas no final, Alice está ajustada, pagando, para tanto, um preço alto. O desfecho trágico, em que Laura se revela num desajuste jamais pensado, faz Alice se sentir culpada por não ter percebido o problema da amiga.

Falta céu

No segundo texto, uma garota observa a transformação de sua cidade pacata – situada à beira de um rio – em alvo da especulação imobiliária. Seu olhar é de perplexidade, ao ver os tratores arrombando a mata ciliar para construir um condomínio. Mas, esse olhar que percebe a mudança externa é também o olho do leitor que vê a menina se transformando intimamente.

A paisagem externa muda (de idílica para fake) e a interna também (de inocente, feliz, para as descobertas da angústia e do desejo). A autora mostra a habilidade na construção do texto quando consegue fechar toda a história com uma simples frase no final, “falta céu”, falada por um publicitário do mercado imobiliário, que, ao transformar o espaço idílico em pedaços de paraíso para ricos e enquadrá-lo em fotografias, viu que a mentira ainda não estava completamente convincente.

Capitão capivara

Nesta novela, dois personagens, Clara e Carlo Bueno, se intercalam, narrando suas histórias ambientadas num hotel. Um terceiro personagem, Edgard, é amigo de ambos e o fio condutor da trama.

É a mais cômica das três novelas (até pelo título). Aliás, possui um humor que não está presente nas outras duas. Os personagens, no entanto, são mais velhos aqui, demonstrando uma continuidade que amarra, sutilmente, as três histórias.

Clara é uma garota de 20 anos, aspirante a escritora, que quer sair da proteção dos pais e conquistar outro patamar de vida. Para tanto, vai procurar emprego numa pousada de luxo, onde trabalha seu amigo Edgar. Quando consegue o emprego, fica feliz, mas descobre que terá de se vestir de Capitão Capivara, o mascote do hotel, para animar as crianças.

Carlo Bueno é um escritor frustrado, que se hospeda no hotel para escrever mais um livro encomendado, que ele detesta escrever, mas que lhe dá muito dinheiro.

Nas três novelas, os personagens se despertam para a vida, tornam-se conscientes do drama maior da existência. Embora em Capitão Capivara o leitor ria mais, o tom dramático está inscrito em algumas passagens, como na descrição que Clara faz de seu amigo: “Edgar tinha a cara de um James Dean esquecido.”

Nesta descrição, além da referência ao cinema e à cultura pop, há também o aspecto da tristeza, “James Dean esquecido”, o desenho do abandono, da entrega à dor da existência, como uma tomada de consciência de que o mundo é estranhamento.

Coincidência de cenas

Alguns trechos de Pó de parede se assemelham com Mãos de cavalos, primeiro romance de Daniel Galera, que, como Carol, também fez a oficina de escritores de Assis Brasil. Por duas passagens, especificamente: a do menino que cai (e a ideia de que cair é legal, é ser forte, presente em Falta Céu) e a do sentimento de culpa (em A caixa).

Pode parecer banal e apenas uma coincidência. Afinal, as atitudes descritas fazem parte do humano. Mas não quando se trata de dois escritores jovens que passaram por um mesmo curso, em que, se não foram colegas, foram vizinhos no tempo.

As duas cenas devem ter sido parte de algum exercício de técnica de narrativa. Carol partiu para uma fragmentação. Galera, para uma unidade. Ambos acertaram nas escolhas e por isso resolveram colocá-las em seus romances de estreia.

As três histórias de Pó de parede não se encaixam muito bem como novelas, nem como contos. São como fragmentos de romances, muito bem delineados. São um exercício bem resolvido. Não estranharei se no futuro Carol voltar com um desses argumentos em romance de fôlego.

Para 2009, no entanto, o que se espera é o lançamento de seu segundo livro, o romance Sinuca embaixo d’água, anunciado na capa do primeiro.


Serviço

Título: Pó de parede
Autora: Carol Bensimon
Editora: Não-Editora, 2008, 128 páginas
Gênero: Novelas
Preço: R$ 25,00

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

LITERATURA INDIANA: o perfil de Salman Rushdie

Rushdie: Versos satânicos lhe rendeu ódio e perseguição

Na década de 1980 este homem teve a pele ameaçada pelos radicais islâmicos do Irã, encabeçados pelo líder máximo aiatolá Khomeini. Viveu escondido por um bom tempo, se esgueirando pelas sombras da proteção ocidental. Houve uma época que ninguém sabia onde ele morava. Acho que hoje, não há esse problema. Onde é mesmo que ele mora?

Essa história toda aconteceu porque ele, Salman Rushdie, escritor indiano anglófono, cujo olhar se assemelha um pouco ao da serpente Celeste, do Castelo Ra-Tim-Bum, escreveu o famigerado Os versos satânicos, que li, em 1998, quando sua publicação foi permitida no Brasil.

Os muçulmanos entenderam que o livro versava mal a história e o caráter de Maomé, profeta que recebeu de Deus (Alá) toda a mensagem do Corão. Mas os alaridos ameaçadores dos radicais islâmicos não abafaram a voz de Rushdie, que continuou a escrever seus romances. No Brasil, há vários títulos.

Nascido em 1947, em Mumbai (Bombaim), Rushdie mudou-se para o Paquistão, com a família, quando tinha 17 anos. Em seguida foi estudar publicidade em Cambridge, Inglaterra. Seu primeiro livro, Grimus, foi publicado em 1975, mas foi com Os filhos da meia-noite que ele ganhou notoriedade, elevada ao cubo com o episódio de Versos satânicos. É ganhador de vários prêmios literários, entre os quais está o Booker Prize.


Serviço

Os livros de Rushdie podem ser comprados na Livraria Cultura, clique no título.

Título: A feiticeira de Florença
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras, 2008, 408 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 54,00


Título: Cruze esta linha
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras, 2007, 408 páginas
Gênero: Ensaios e artigos
Preço: R$ 59,00

Título: Os filhos da meia-noite
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras, 2006, 608 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 70,50

Título: Fúria
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras, 2003, 312 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 52,00

Título: Shalimar, o equilibrista
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras, 2005, 392 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 53,50

Título: Versos satânicos [edição de bolso]
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras, 2008, 600 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 28,50