quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A epopeia dos desgraçados: leitura mínima de A minha alma é irmã de Deus

Cena do curta-metragem baseado em A minha alma, dirigido por Luci Alcântara

Certa vez perguntaram a Raimundo Carrero por que seus personagens eram tão sombrios. “Porque minha alma é sombria”, foi a resposta. E é verdade. O escritor pernambucano tem veia autoral peculiar, com a qual constrói uma beleza diferente na literatura brasileira.

Sua prosa, de caráter melancólico (mas não monótono), é música de solidão e tristeza, que procura arrastar para o espaço da página a decadência humana, o universo da loucura e dos vícios. A marca de abandono existe até mesmo quando há multidão. Ainda que os personagens sejam plurais e compartilhem o mesmo palco, o que se destaca é a dança, é o som, o eco da solidão irrevogável.

E não é exagero. Para conferir, o leitor pode começar pelo romance A minha alma é irmã de Deus (Record, 2009), que fecha a tetralogia Quarteto Áspero, junto com Maçã agreste, Somos pedras que se consomem e O amor não tem bons sentimentos.

Em A minha alma, desfila o mundo de infortúnios, da infância à velhice, de uma mulher chamada Camila. Ela é a figura central do elenco de pobres coitados que ocupam as ruas do Recife. Camila saiu de casa aos 12 anos após ser abusada sexualmente pelo pai e pelo irmão e ser seduzida por um explorador de almas e de corpos, Leonardo.

Em sua trajetória de menina solta, criança inserida no universo adulto e alienada de seus direitos, Camila cria subterfúgios para sobreviver. Inventa personagens, faz-se passar por Raquel, Mariana, Ísis, Paloma. Ora é a religiosa que espera estar ao lado de Deus, ora é a fotógrafa ninfomaníaca ou a prostituta mais filantrópica do mundo, que oferece seu corpo a mendigos e falidos de toda ordem, considerando a si mesma apenas um corpo social.

Essa multidão em uma só pessoa é a metáfora arrasadora que Carrero criou para desenhar a situação de um número bem grande de párias que existem (principalmente de mulheres esquecidas), não só no Recife, mas em todas as metrópoles.

Camila é um monte de mulheres, mas não é ninguém. Isso equivale a dizer que muitas mulheres são como Camila, sofrem abusos e vivem como fantasmas. Ao mesmo tempo, Camila é um disparate, um delírio só, delirante, lírica, sonhadora. Inventa que foi sequestrada e que a família vai resgatá-la, faz de conta que é nobre, que é santa, intocável, enquanto segue pelas ruas da capital pernambucana oferecendo seu corpo social.

Ela vive assim, à margem, até morrer. Ela é a nota mais tocante na criação jazzística que é a escrita de Carrero nesse livro. Nesse sentido, a violência, o amor, o sexo, a loucura, a morte, todos os elementos de composição do romance são orquestrados com notas verbais, arquitetados com engenhosidade.

Na toada do jazz

O romance trata da marginalidade e da vida que pulsa nesse universo. Mas não o faz de forma leviana, nem linear. A construção do texto tem uma melodia impressa, resultado de um trabalho intenso de tensão e ritmo. Carrero é amante da música. Sua prosa valoriza sempre a entonação melódica. Seus personagens são desenhados pelo ritmo. Cada personagem tem o seu. “Cada emoção tem um pulso”. O de Camila é o jazz, a improvisação.

É ela quem narra sua história. Ou melhor, é ela quem monta suas lembranças de modo a se tornar um corpo vivo de histórias e situações, criando a atmosfera da realidade que viveu. Mas cada cena, cada capítulo tem um ponto de vista que pode ser de Camila ou de um terceiro, ou até mesmo dela se fazendo passar por outro que fala dela, como num concerto em que um instrumento repete a frase musical que o outro deu. Jam Session.

“O problema é que só vai se lembrando da história à maneira que conta. Ela não sabe a próxima palavra, a próxima frase, não sabe a segunda oração, não sabe o terceiro parágrafo”, diz em certo trecho. Eis o jazz, o improviso da cena, a vida tal como acontece com os miseráveis.

Tudo é improviso, na tentativa de sobreviver ao caos e à violência, como quando, logo em seguida, é relatada a coação que Camila sofreu por um de seus parceiros, Miguel.

“Nada sabe. Nem mesmo se lembra do dia em que teve de desfilar com uma vela acesa na sala escura, só para agradar o amado. Não foi na mão, foi, Camila? Não foi com a mão que você carregou a vela? Não, não foi, ela responde, mas por isso mesmo não quero me lembrar de Miguel. Foi na parte dolorosa do corpo. Não digo, não digo. Feito um animal. Quadrúpede. Assim? Assim. Você carregou a vela assim? E doendo, doendo muito.”

Com Deus no título, o autor já demonstra a intenção de criar uma atmosfera sagrada, mas só para fazer sobressair o profano. Leonardo, o pastor, é um saxofonista, que comanda a seita Os soldados da pátria por Cristo. Há aqui uma fina sugestão de que o mundo foi criado por Deus num improviso sem igual.

Carrero tem uma orquestra na alma. Seu romance, escrito caprichosamente para simular essa improvisação, é cenário realista que cria um ambiente de delírio e de sonho. Em outros livros, ele também imprime certas tonalidades, como a sinfonia de Somos pedras que se consomem e mais uma vez o jazz de Ao redor do escorpião ... uma tarântula? – orquestração para dançar e ouvir.

Bela e estranha

Em A minha alma é irmã de Deus, o autor que nasceu em Salgueiro, sertão pernambucano, faz uma evocação ao Recife, onde mora. É que no fim da vida, Camila percorre a cidade puxando uma carrocinha, repuxando a memória para não se esquecer de si mesma, já que é esquecida por todos, pois não é mais o corpo social, não é mais plural.

Em sua agonia e delírio, está sozinha, nas ruas do Recife, em lugares como a avenida Guararapes, com “grandes e imponentes pilares dos prédios (...), sujos de cartazes e grafites, (...) tão cheia de bancas de revistas, sebos nas calçadas e mendigos loucos.” Mais adiante, um espanto, talvez da própria Camila, talvez do próprio Carrero: “Bela, estranha e espantosa cidade do Recife – habitada por banqueiros e pedintes, bêbados e loucos, homens de pastas nas mãos, meninos e meninas prostituídas.”

A literatura de Carrero não é de significado fácil. Mas é muito mais difícil entender como um escritor premiado como ele, publicado por uma das maiores editoras do país, pode ser tão desconhecido, enquanto autores notoriamente menores aparecem mais.

A pergunta é de retórica. Afinal, isso não importa nem para ele mesmo, que certa vez disse: “o importante na minha carreira é construir uma obra.” Sua produção recria uma espécie de epopeia dos desgraçados. Sua literatura é o reflexo de uma alma criativa e sombria, transtornada de beleza e espanto.

(Texto publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 31 de outubro de 2009)

OBS: A minha alma é irmã de Deus foi adaptada para o cinema, num curta-metragem homônimo, dirigido por Luci Alcântara, que pode ser visto no site do próprio Raimundo Carrero.

Leia também neste blog:

Raimundo Carrero vence Prêmio São Paulo de Literatura

A MINHA ALMA É IRMÃ DE DEUS: o jazz da dor e a evocação do Recife

Serviço:

Título: A minha alma é irmã de Deus
Autor: Raimundo Carrero
Editora: Record, 2009, 176 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 34,90

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