sábado, 20 de outubro de 2012

A voz do silêncio no alto falante


A arte de afinar o silêncio (Ponteio, 2012, 114 páginas), novo livro de contos do carioca Mariel Reis, é um título curioso e instigante. Sugere o silêncio como um instrumento por meio do qual se comunica ou canta alguma coisa. Sem a afinação, seria apenas ausência de som, mas o que o autor quer talvez seja o conteúdo contido, concentrado, o silêncio corroendo as entranhas da voz para dizer algo com mais precisão, com subterfúgios de esquecimentos e lembranças.

Isso é minha tentativa de entender seu título. Talvez não dê em nada. O nada nadifica. Li todos os contos com o silêncio retroando em minha cabeça. Mariel Reis faz parte da nova geração de escritores brasileiros, com uma identidade clara, a de carioca que sabe falar das nuanças, das paisagens geohumanas, contidamente, mas que explode (em silêncio) na leitura, de sua cidade, entre zeugmas e elisões, fingido esquecimento como no conto Jim Cluster.

Ele estruturou seu livro como quem segue uma programação de TV, jogou para dentro da literatura a espinha dorsal da alma brasileira. Compôs uma série de intertítulos entre os títulos dos contos e fez do leitor uma espécie de espectador que nada  escuta pelas ondas sonoras. É uma TV por meio da qual se vê tudo, e se escuta tudo, se se tiver atenção, imaginativamente, no silêncio da leitura.

Pela manhã o Bom Dia, depois o Programa Feminino, o Telejornal – 1ª Edição, o Cine Matinê (onde se lê Jim Cluster), O Povo Quer Saber, Novela das Seis, Telejornal – 2ª Edição, Mistérios do Desconhecido, Documento Especial, Entrevistas, Telejornal – 3ª Edição, Fora do Ar. Entre esses feixes de programação, os contos. E nesse crescer de audiência, há um crescimento interior. São contos de formação.

Em Jim Cluster, Willie, o narrador, se lembra do personagem do título, um menino arredio que se dava melhor com os cavalos do que com as pessoas. Quando virou homem, aliviava-se sexualmente com bichos e prostitutas. A narrativa, em períodos curtos, vem numa variação de planos sequências cinematográficos à faroeste, em que Jim vai aparecendo e desaparecendo, de menino a homem feito.

Jim traz uma angústia consigo, mas não se sabe o que é. Sabe-se que há uma morte, que ele bebia muito, que frequentava puteiros para espantar a solidão, como o próprio  Willie, o narrador. O desfecho é de um personagem em aberto. Todos os contos de A arte de afinar o silêncio se fecham como inconclusões,  no ar rarefeito da vida, e os personagens dançam à procura de seu próprio enredo.

Em alguns casos, os contos refletem sobre a própria arte de escrever, de criar. Exemplo disso são narrativas de Entrevistas, que levantam um conjunto de reflexões sobre a literatura, ao falar de escritores sensíveis ao Rio de Janeiro e ao Brasil, como Machado de Assis, Lima Barreto, Marques Rebelo (pseudônimo de Edi Dias da Cruz), um dos maiores cronistas da Cidade Maravilhosa.

Nesse feixe de quatro contos, o autor busca a reflexão estética citando um dos gurus da moderna estética literária, Francis Ponge, autor de Métodos e O estado das coisas. Talvez por aí seja possível entender a linha de criação de Reis que o levou a escrever um interessante conto sobre a reificação da alma, As minhas queridas encarnações, conto do intertítulo O Povo Quer Saber. Ali o narrador conta a história de suas regressões, quando fora uma infinidade de utensílios domésticos e até um brinquedinho sexual.

“Há teorias encarnatórias que pregam que o indivíduo pode passar por várias fases: da mineral à humana. Aproveitei o gancho que elas possibilitam para emendar que nesta era tecnológica minha primeira lembrança – ou aquela que se livrou do soterramento do meu inconsciente – é a de que fui uma torradeira Kenwood americana.”

Esse conto dá a dimensão exata do jogo com a infantilização das pessoas pregadas diante da televisão, ao mesmo tempo que nos faz rir com a antítese da encarnação daquilo que não é carne, é ferro e lata, é, portanto, uma reificação da alma.

Somos coisas no presente, e as regressões do narrador nos mostram isso, embora o que ele faça também é brincar com quem lê horóscopo, com quem assiste aos programas de variedades todos os dias como veículos de utilidade doméstica. E até são. Desbancam a solidão, informam um sem número de anotações, fazem de nós coisas dentro das quais se deposita qualquer papo furado.

Passagens

A arte de afinar o silêncio toca em temas fundamentais de todos os tempos: loucura, solidão, devaneio, violência, sexualidade e sexo, amor, religião e fé (e o espectro da mídia a espreitar com olhos de TV), sem fazer alarde, e roça, como pássaro que ameaça pousar e revoa, como beija-flor à flor, a pele sensível da literatura.

Como quem sopra, o livro faz chover alguns pingos da estética clássica, evoca os bons ventos de grandes nomes para falar do Rio, e o autor põe sua alma e sua cor sutilmente nos contos, dividindo-a em fases, a de menino, TV pela manhã, a de garoto em descoberta do mundo, e telinha durante a tarde com direito ao encanto do cinema, que o leva ao homem feito.

Em alguns textos, o leitor vai pescar passagens muito bonitas isoladamente, como esta do conto Iberê, clara homenagem ao pintor gaúcho Iberê Camargo, que no exílio, se lembra com saudade de sua terra natal:

“Lembranças que carrego comigo dentro da metrópole, nessa cápsula que é o meu corpo a me conduzir como um estímulo nervoso pelas células das avenidas, contornando praças, detendo olhar nos chafarizes e nos monumentos abandonados aos pombos.”

Em outros, o leitor encontra ressonâncias mais longínquas, construções que parecem revelar por onde passam as referências literárias do autor, além das citações explícitas. Em O plinto e a poesia, o narrador se lembra de quando era um garoto querendo impressionar as meninas do colégio, mas não conseguia ser atleta. O jeito foi se meter a ser poeta. Mas “a leitura não era minha tarefa favorita.” Ainda assim, ele foi adiante, estudando, ganhando confiança ao ser elogiado pela professora e pelos colegas.

Foi bem sucedido na empreitada:

“Só que tudo isso era meu exterior. Lá dentro eu ainda pensava em capinar quintais, soldar ferros e me isolar o mais distante possível de toda a balbúrdia escolar, morar longe daquela cidade, dos edifícios e da violência ao redor, e atrás das paredes dos edifícios.”

Isso lembra um pouco, na construção da narrativa, uma passagem de Georges Perec, em As coisas. Não por demérito do autor, pelo contrário.

Em As coisas, a história gira em torno de um casal que quer viver como vivem os ricos. E trabalham muito para isso. Vivem em bairro da classe alta e consomem o que os ricos consomem, mas em função disso acabam vivendo num padrão acima de suas possibilidades. O maior problema, no entanto, está mais no fundo:

“A imagem que tinham de um banquete correspondia, ponto por ponto, às refeições que por muito tempo, e exclusivamente, eles tinham conhecido, as dos restaurantes universitários: de tanto comer bifes finos e coriáceos, tinham dedicado aos tournedos e aos filés altos um verdadeiro culto. As carnes com molho – e por muito tempo desconfiaram até mesmo do pot-au-feu – não os atraíam; guardavam uma lembrança muito nítida dos pedaços de gordura boiando entre três rodelas de cenoura, ou da íntima vizinhança de um petit suisse amassado com uma colherada de geleia gelatinoso. (...) Gostavam da abundância e da riqueza aparentes; recusavam a lenta elaboração que transforma produtos ingratos em iguarias e implica um universo de frigideiras, panelas, facas de picar, peneiras, fornos. Mas de vez em quando a visão de uma peça de charcuteria os fazia quase desmaiar.” Isso é Georges Perec. Seus personagens fazem o processo inverso de quem come sardinha e arrota caviar.

No caso do personagem de Mariel Reis, em O plinto e a poesia, ele também tem essa superficialidade na alma, que é vista constantemente em quem diz gostar de literatura sem ter a coragem de encarar os grandes autores e seus abismos.

É exatamente o contrário de seu autor. O que vemos aqui é um avanço em técnica e temática, em que o autor brinca com as formas. Por isso contos de formação, por isso mesmo este livro provavelmente tem um significado especial na vida de escritor de Mariel Reis. É um amadurecimento, um acabamento de estilo e uma sondagem. E ele bem que pode ter descoberto que pode ir além em seus livros futuros, não por deixar a desejar neste, mas por ter encontrado na desdobra de sua escrita novos caminhos.

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Um comentário:

Mauricio disse...

É obvio que nenhum jornalista ou filósofo é dono da verdade. Filosofar é especular e gosto da forma como constroem suas reflexões, apesar de observar falhas em muitas delas. Mas a contribuição dos pensadores antigos e modernos para a filosofia é inegável. Só posso dar parabéns aos pensadores, embora em vários momentos, tenha tido também contribuições de crianças que mesmo sem o saberem tenham me dado o ponto ou contraponto que faltava para uma reflexão. Ou seja, qualquer pessoa pode dar a sua contribuição para o pensamento humano. Eu gostaria de ver ensaios sobre "tendências" partindo de jornalistas e de filósofos brasileiros ou não. Algo bem específico. Uma das características principais da comunicação humana, seja ela escrita, falada, iconográfica, etc. é a tendência. A mesma fala vindo de pessoas com tendências opostas assumem conotações totalmente diversas. Por exemplo: a fala "o importante é participar" dependendo da tendência de quem a pronuncia assume uma conotação: de exploração, de resignação, de estratégia, etc..