terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Poesia e verdade

Se os filósofos cavucam amorosamente o chão da existência para descobrir verdades, questioná-las, demovê-las, e os poetas estão ao seu lado como guardiões da linguagem, segundo Heidegger, é possível dizer, por uma certa linha de raciocínio, que no resultado final da poesia, sua leitura também nos mostra verdades, além da finalidade estética.

Se na filosofia, a verdade é dada ou provocada por meio de um amor crítico, na poesia, essa verdade vem por meio de uma beleza crítica, em crise. É a estética sendo cavucada também, cujo resultado não é apenas o belo. A beleza tem várias categorias (na poesia, e nas artes de modo geral, também é bonito ser feio, veja o Corcunda de Notredame), como o sublime, o grotesco, o trágico, o cômico e o horror, meu Deus, o horror.


A poesia também nos dá a oportunidade de ver o horror, olhar pra ele, cavucá-lo, como nas ocasiões de guerra (pode ser a guerra dentro da gente, a la Leminski, pode ser a guerra em família, e os horrores que certos pais e mães fazem com seus filhos, pode ser o horror que certos filhos fazem com seus pais, o horror da exploração, o horror), como pode uma vida resistir? O horror faz parte da poesia porque faz parte da vida, e quando a guerra acaba, a vida persiste. E a poesia também.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Inferno provisório


Se eu tivesse a oportunidade de entrevistar Luiz Ruffato, a pergunta que eu teria pra ele seria “você bebe?”. E se ele dissesse “não”, eu não teria  mais nada a perguntar. Mas se dissesse sim, eu perguntaria: “E quando você bebe, e você fica bêbado, você se lembra dos personagens de Inferno provisório, e aí? Você chora?”

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Jorge Amado, o porreta

É preciso ler Jorge Amado, por várias razões. Quem não achar nenhuma (quase impossível, porque o homem é o maior paisagista do Nordeste, um grande criador de tipos, o romancista mais sensual do país, no sentido de imprimir os sentidos e de provocá-los também), dou um:

Comece por Tieta do agreste. Se achar que o romance tem muitas páginas e você não é de ler livros que se sustentam em pé sozinhos, leia as aberturas de capítulos, que são sensacionais. Aliás, comece pelo extravagante subtítulo.

Tieta do agreste – pastora de cabras ou a volta da filha pródiga, melodramático folhetim em cinco sensacionais episódios e comovente epílogo: emoção e suspense.

Veja algumas aberturas de capítulos, de tradição machadiana, para não irmos a Stern, nem a Swift:

“Exórdio ou introdução onde o autor, um finório, tenta eximir-se de toda e qualquer responsabilidade e termina por lançar imprudente desafio à argúcia do leitor sibilina pergunta.”

“Breve explicação do autor para uso daqueles que catam pulgas em elefante.”

“Onde Ricardo, sobrinho e seminarista, acende velas contraditórias aos pés dos santos; capítulo banhado em lágrimas, algumas de crocodilo.”

“Onde dona Carmosina lê um artigo, resolve problema de palavras cruzadas e problemas referentes à situação de Tieta, dignos dos mais sagazes detetives dos romances policiais e onde se trava conhecimento com o comandante Dário de Queluz, surgindo ao final do capítulo o vate Barbozinha (Gregório Eustáquio de Matos Barbosa), de coração partido.” Ou seja, não há mais para ler, já contou tudo.

“Enquanto o leitor respira, o autor se aproveita e abusa.”

E por aí vai. Só mais um:


“Onde, nesta altura da narrativa, apresenta-se personagem nova, mais uma puta, por sinal, num livro em que já existem tantas”. Jorge Amado era porreta. O irmão dele, James, faleceu ontem (R.I.P.).

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sexo, morte e psiquiatria

Em O templo do pavilhão dourado, de Yukio Mishima, o protagonista ainda criancinha vê a mãe transando com um desconhecido ao lado do leito de morte do pai. No final, ele toca fogo no templo.

Em O grito silencioso, de Kenzaburo Oee, o narrador encontra seu melhor amigo dependurado numa corda, nu e morto, claro, com um pepino introduzido no ânus. Em 1Q84, de Haruki Murakami, Tengo, um dos protagonistas, conserva na memória uma cena de quando tinha apenas 1 ano e meio, em que está no berço observando um homem, que não é seu pai, chupando os peitos de sua mãe.

Os japoneses são freudianos pra cacete, não são não? Em A casa das belas adormecidas, de Yasunari Kawabata, um velhinho tarado paga uma cafetina para deixá-lo observar uma ninfeta dormindo pelada.

Sexo, morte e psiquiatria são temas muito recorrentes na literatura japonesa, mais do que amor, inveja, ciúme e engajamento político, essas bobagens ocidentais.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Eu queria ser Vinicius de Moraes

Lucinha Proença e Vinicius de Moraes

Em uma das cartas que enviou para sua irmã, e que está presente na coletânea organizada por Ruy Castro, Vinicius de Moraes (1913-1980) descreveu o uso poético que queria fazer de sua própria vida, que ele mesmo disse ser regra que não é regra. “Só andar na ponta dos pés. Só ser delicado. Só aceitar o inaceitável. Só criar em alegria, e sobretudo: só ser íntimo.”

Só ser íntimo. Eis uma coisa difícil. A intimidade expõe a alma do sujeito, tal como ela é, sem subterfúgios. Mas era Vinicius. E se existiu uma coisa exposta por ele em sua inteireza foi sua alma, alma de poeta, diga-se, mas diferente de tantos outros grandes poetas brasileiros, como João Cabral de Melo Neto, para ficar no hall dos diplomatas e sedutores.

No dia 19 será celebrado o centenário de nascimento de Vinicius de Moraes, um poeta que admiro. Diria mais. Queria sê-lo, não pelas mulheres que teve, e foram tantas e tão bonitas, nem pelos uísques que bebeu, e foram tantos e tão dionisíacos, nem pela poesia que fez, que é uma das que mais aprecio em língua portuguesa. Queria ser Vinicius de Moraes pela capacidade incrível que ele tinha de compreender as pessoas, e depois, como consequência disso, amá-las e conquistá-las.

Vinicius não teve inimigos. Teve, isso, sim, alguns antagonistas, mas não por causa de sua vida, só por causa de sua poesia, etérea demais, depois chã demais, diziam. Os concretistas não gostavam disso. Não gostavam porque não queriam entender, eram intelectualizados demais. Não que ele não fosse.

Se fizéssemos um aperto imaginário, como quem torce roupa, nos poemas de Haroldo de Campos, sairiam tintas de todos os matizes, uma beleza multifônica, uma dialogia trincante e fluorescente. Mas a poesia de Vinicius, se a torcêssemos imaginariamente, sairiam dali sangue em meio à morte e à vida, o fôlego, o ritmo absoluto da existência pulsante.

Queria ser Vinicius de Moraes por essa capacidade de sentir a vida intensamente que ele nos mostrou em versos, esse rasgo de luz em meio à escuridão, essa capacidade de transformar a tristeza em alegria, de expandir uma bolinha de gude em um universo inteiro.

Queria ser Vinicius por ele ter vivido o amor nas suas esferas mais humanas, por ter passado por esse mundo e feito minguar a pobreza de nosso coração, dando-nos a oportunidade de diminuir o índice do analfabetismo afetivo. Tinha alma de poeta, e isso equivale a dizer que possuía a destreza para transitar entre o homem e a criança que também era. Para ser Vinicius seria preciso ser poeta. Era isso que ele era, e era o que dizia ser, embora no fim da vida tenha se considerado sobretudo músico.

Tinha o dom de aliar o rigor da forma, como nos sonetos, ao estilo do nonsense infantil e divertido, como nas canções da Arca de Noé e nos poemas em que brinca com a morte, beija-a, afaga-a, íntimo. Por isso, só por isso, eu queria ser Vinicius de Moraes. O resto seria mera consequência.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 04/10/2013)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

De amizades e livros: trecho de reportagem sobre Philip Roth


“Philip Roth teve seu primeiro livro editado por Veronica Geng antes que os dois se encontrassem pessoalmente e se tornassem amigos rapidinho – ou, como o próprio Roth relembra: 'Quando começamos a nos fazer rir”.

Geng era editora desta revista (The New Yorker), além de uma escritora de aguçadas sátiras sociais, quando escreveu para Roth no final dos anos 70, dizendo o quanto admirava sua obra e perguntando se ele não tinha alguma coisa que a New Yorker pudesse publicar.

Quinze anos antes, Roth tinha aparecido nestas páginas (da New Yorker), mas a revista já tinha sido considerada o país de (John) Updike. Roth diz que ali concluíra que o poder local 'Não gostava dele'.

(15 anos depois) Roth não tinha um conto para oferecer naquele momento. Mas tinha acabado de escrever um romance, The Ghost Writer (que em português saiu com um título imbecil: Diário de uma ilusão), e ele o enviou para Geng ler.

A reação dela, disse mais tarde a Roth, foi marchar rumo à mesa do editor da revista, William Shawn, colocar o manuscrito sobre a mesa e dizer: “temos de publicar o livro todo” (“We should publish the whole thing.”).

The New Yorker publicou o livro todo, em dois números, no verão de 1979, colocando-o na ilustre companhia de Hiroshima, de John Hersey, Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, A sangue frio, de Truman Capote, e Primavera silenciosa, de Rachel Carson, livro este que nos alertou para um apocalipse ambiental.”

Este é o trecho de uma reportagem muito boa sobre Philip Roth e seus amigos, na revista The New Yorker, por Claudia Roth Pierpont, intitulada O livro do riso. Pena que não se pode ter acesso total se não for assinante, como não sou. Esse aperitivo é para nós, leitores do Giba, com uma tradução modesta (perdoem).

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Os loucos parecem eternos


O eterno sob outra perspectiva. Ou o tempo em sua inteireza, absoluto, derramado sobre todas as coisas vivas e mortas, sem o tique-taque do relógio ou as convenções. O tempo atravessando os corpos e transformando-os, e dentro dele, rodopiando em sua esfera diáfana, a loucura. Os loucos parecem eternos, disse-me uma vez uma mulher que já morreu, mas que deixou seu recado mui substancialmente em um livro chamado Hospício é Deus. Disse-me por meio da leitura.

Maura Lopes Cançado (1929-1993), uma louca de juízo, foi uma escritora mineira, que escreveu seu primeiro livro em forma de diário, de apontamentos nas noites mal dormidas durante os longos dias em que ficou internada em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro.

Inteligente e escandalosamente bonita, em suas próprias palavras (“sou a mais bela invenção que conheço”), ela trabalhou no Jornal do Brasil nos áureos anos 60 e conheceu todas as grandes almas daquela época, como Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Carlos Heitor Cony e Reynaldo Jardim, autor do prefácio do livro de Maura, que depois escreveria só mais um livro de contos, O sofredor do ver.

A loucura de Maura passa ao largo diante de sua maneira arrebatadora de ver o mundo. Sua loucura, como a de todos os loucos, sem levar em conta aqui a patologia que enrosca no ser do louco e não quer jamais sair dele, engrandece sua pessoa, ilumina-a e nos ofusca. É claro que se trata da loucura genial, mas no fundo todos os loucos são geniais. De alguma forma, todos os loucos ultrapassam a linha imaginária das convenções e se libertam das amarras da linguagem, explodindo-a, das amarras do sujeito, subvertendo-o.

A loucura é uma sondagem grandiosa do sujeito para consigo mesmo, é uma abstração, é como Deus. Não por acaso, os loucos não têm modéstia. Quer dizer, até que têm. Um louco que diz que é Napoleão é um louco modesto. Quando ele diz que é Deus, aí, sim, está se abrindo na plenitude de sua loucura: “Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol”, diz Maura. “Que emoções escandalosas tenho dentro de mim”, confessa. Segundo ela, Hospício é Deus não é um diário íntimo. “Seria verdadeiramente escandaloso meu diário íntimo.”

Escrevo este texto lembrando de Maura Lopes Cançado e pensando em Antonin Artaud, em Bispo do Rosário, mas também nos loucos anônimos que estiveram recolhidos em manicômios, maltratados pela sanidade, pelo sistema ordenador do mundo, pelo poder, pela família, pelos transeuntes.

Não quero falar aqui da patologia (não saberia), nem do sofrimento de familiares que por ventura passam noites sem dormir por causa de uma vida sob sua responsabilidade tomada pelo infortúnio dos transtornos psíquicos. Quero registrar apenas essa imensidão temporal que nos espreita de alguma forma, que nunca entendemos. A eternidade assediando a vida, sem intermediário.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 27/09/2013)