segunda-feira, 12 de maio de 2014

Breve estudo sobre Guerra e paz

O romance Guerra e paz, do russo Liev Tolstói, foi escrito entre 1863 e 1869, mas ambientado num tempo anterior, numa Rússia que enfrentou o gênio estratégico de Napoleão Bonaparte que queria dominar o mundo, e estava quase conseguindo, até se esbarrar no combate de homem a homem da batalha de Borodinó.

Guerra e paz é um romance longo, que no formato publicado pela editora brasileira CosacNaify leva 2.528 páginas, em dois volumes, costurando a vida comezinha do dia a dia e as grandes batalhas. Com uma multidão de personagens, muitos deles pertencentes à ala de frente da trama, desempenhando papéis fundamentais, narra a vida da sociedade russa num momento importante de sua história, um período de agonia e glória, retratando um conflito que durou de 1805 – quando o exército de Napoleão dá os primeiros sinais de que invadiria a Rússia de Alexandre I – a 1812, quando ocorreu a batalha de Borodinó e 80 mil soldados tombaram, no total.

Depois a narrativa escorre por mais um ano, além de sugerir que o tempo da narração está ancorado em 1819.

Para falar da guerra e abrir uma discussão sobre o fracasso da história, ao mesmo tempo em que mostra a alma russa, Tolstói trouxe junto todo o tecido social, com os fatos da cozinha e da intimidade da alta burguesia, os conchavos, as fofocas, os bailes, o amor, o ódio, os contratos sociais, tudo para encorpar o novelo de acontecimentos de um corpo social complexo, dentro do qual vão-se forjando os novos fatos, dentro do qual a História se perde e não consegue alcançar a explicação de por que uma guerra acontece, nem de por que uma sociedade muda seu rumo.

O primeiro volume, com os primeiros tomos, é dedicado à alternância entre tempos de guerra e tempos de paz, entre o front, com tiros e mortes, e os salões, com flertes e conspirações.

Vemos surgir os grupos e os matizes sociais no salão de Anna Pávlovna, a herança de Pierre Bezúkhov, a perfídia da bela, mas ordinária, Hélène, o jogo de interesse de Vassili, a bela família dos Rostov, com Natacha, Pétia, Nikolai e Sônia, a complicada mas honrada família dos Bolkónski, com Mária e o irmão Andrei, as discussões pró e contra Napoleão, as relações de uns e outros com a família imperial.

No segundo volume, tudo se mistura, pois é quando a guerra já tomou conta do país e todas essas personagens estão, de alguma forma envolvidas na guerra, que do lado russo está sob o comando do general Mikhail Ilariónovitch Kutúzov, cujo exército de algumas dezenas de milhares de homens enfrentará as centenas de milhares de soldados franceses e a ardilosa mente de Napoleão.

É nesse caldeirão de vida que Tolstói usa a História como contra-argumento, para mostrar que a Literatura alcança os recantos aonde a própria História não consegue ir. A Literatura dá conta de um tipo de verdade que a História sequer sonha que existe, uma verdade feita de acontecimentos minúsculos que vão se agigantando como átomos acumulados, pregados uns nos outros até que, como num milagre, moléculas surgem para criar corpos maiores para dar forma a estruturas a olhos vistos.

Esta, em conjunto com outras estruturas, é o que a História consegue ver. Aqueles, entre partículas, átomos e moléculas, é o que a literatura pode captar e mostrar ao leitor, apontando os marcos a partir do qual a vida é feita, em que os fatos acontecem, mostrando, portanto, como a sociedade se faz e navega no fluxo dos acontecimentos.

Guerra e Paz é um romance inventado para inventar um tipo de Rússia, a forte, teutônica Rússia, e ao mesmo tempo mostrar a tibieza da História, incapaz de apontar os pormenores que levam uma nação em guerra à vitória ou à derrota.

Entre um caso e outro, mostra também a força e a fraqueza individual dos homens. Mostra a imponência de Napoleão, homem admirável pela capacidade de ser imperador e ao mesmo tempo general, de comandar um império e ao mesmo tempo estar à frente de um campo de batalha. Mas retrata também o tamanho físico de Napoleão, fazendo uma metáfora para sua insignificância diante da guerra e das circunstâncias.

Os diversos fatos de guerra, as batalhas, as mortes, os recuos, os avanços, os saques, a coragem e a covardia dos soldados, o amor, os bailes, as traições, a religiosidade, a ganância, os mínimos detalhes que vão se acumulando na alma de cada personagem, tudo isso são fatores que no acúmulo dos dias e dos anos vão direcionando as ações humanas, interferindo de uma maneira ou de outra para que, no final de cada modificação na vida social, esses pequenos detalhes tenham tido papel importante nas grandes mudanças.

Esta é a tese de Tolstói, uma tese segundo a qual a História não consegue captar esses pormenores de sentimento, de ação, de perspectiva. Tudo depende das circunstâncias, que não se prende a nenhum fator especial.

E a História não consegue isso porque é feita pelo uso do intelecto, cuja principal ferramenta de acesso aos fatos é a razão. Mas os fatos da vida, os fatos que levam a um corpo maior, acabado, do que se chama realidade escapam à razão, na hora de serem contados. O que fixa isso são as circunstâncias, e elas não podem ser vistas do mesmo modo por intelectos diferentes.

Uma das personagens fulcrais de Guerra e paz, Pierre, em certo momento representa essa contestação tolstoiana. Pierre vai participar de um encontro maçônico pela primeira vez, e lá, naquela reunião, “ele se impressionou com a infinita diversidade de intelectos humanos, cuja consequência é que nenhuma verdade se apresenta da mesma forma para duas pessoas”, foi sua conclusão (2011, p. 898).

Quem luta para construir sua vida segundo a própria razão “sucumbe. Quem se submete às circunstâncias, vence.” Eis a premissa. O romance inteiro é construído para levar a cabo essa ideia. E isso acontece não só na guerra, acontece no amor também.

Sobre a guerra, basta citarmos a passagem em que o narrador argumenta por que a sangrenta batalha de Borodinó teria acontecido do jeito que aconteceu independente de Napoleão, razão também pela qual a Rússia vence, embora tenha menos soldados e menos intelecto, se for comparada aqui a genialidade de Napoleão e a propagada parvoíce e quietude de Kutúzov.

“Muitos historiadores dizem que a batalha de Borodinó não foi vencida pelos franceses porque Napoleão estava resfriado e que, se ele não estivesse resfriado, as suas ordens, dadas antes e no decurso da batalha, teriam sido ainda mais geniais, a Rússia estaria perdida, et la face du monde eût été changée. Para os historiadores que consideram que a Rússia foi formada pela vontade de um homem só – Pedro, o Grande – e que a França passou da república ao império e suas tropas foram para a Rússia pela vontade de um só homem – Napoleão –, e o argumento de que a Rússia continuou a ser poderosa porque Napoleão teve um grande resfriado no dia 26 é, para tais historiadores, um raciocínio perfeitamente lógico. (...).

“Mas, para as pessoas que não admitem que a Rússia tenha sido formada pela vontade de um só homem – Pedro I – nem que o império francês tenha constituído e a guerra contra a Rússia tenha tido início pela vontade de um só homem – Napoleão –, tal raciocínio não só parece equivocado e absurdo, como também contrário a toda essência humana. (...)

“Na batalha de Borodinó, Napoleão não atirou em ninguém e não matou ninguém. Os soldados fizeram isso. Portanto não foi ele que matou as pessoas.

“Os soldados do exército francês foram matar os soldados russos na batalha de Borodinó não por causa das ordens de Napoleão, mas por sua própria vontade. (...) Se Napoleão tivesse proibido suas tropas de lutar contra os russos, os soldados o matariam e partiriam para lutar contra os russos, porque isso era uma necessidade para eles” (2011, p. 1632-35).

Todo o romance de Tolstói flui com essa lógica da incerteza, da irracionalidade, do insólito. Tanto é assim que suas personagens parecem ir para um lado e de repente estão em outro, como é a história de Hélène e Pierre, que se casam, e depois ela morre e ele se casa com Natasha, ou a história de Nicolai, apaixonado por Sônia, e ela por ele, mas acaba se casando com Mária.

Esse exemplo do amor e da guerra submetidos às circunstâncias é a essência da vida, segundo a premissa de Guerra e paz. Ou seja, Não só no curso da história, da vida social e política, mas também o fluxo da vida interior é um produto mais do acaso do que do planejamento. Quando Nikolai Rostóv se preparava para se casar com Mária, o narrador, provavelmente ele mesmo, diz o seguinte:

“(...) Após uma breve mas sincera luta entre a tentativa de construir sua vida segundo a própria razão e a submissão obediente às circunstâncias, ele optou pela última e rendeu-se ao poder que o arrastava não sabia para onde e (ele sentia) de modo irresistível. (...) Mas sabia também (e nem tanto sabia como sentia no fundo da alma) que, rendendo-se agora ao poder das circunstâncias e das pessoas que as governavam, ele não só não faria nada de ruim, como faria algo muito importante, mais importante do que qualquer outra coisa que havia feito na vida” (2011, p. 1966).

Em Guerra e paz, Tolstói vê o fluxo da história e, consequentemente (ou contrariamente), as ações humanas como mínimas sequências de ondas (2011, p. 2.319) que acabam formando outras ondas maiores, até se configurar todo o balanço do mar com suas reviravoltas sem que não se saiba o que fez o quê. “Quanto mais nos aprofundamos na busca das causas, um maior número delas se revela para nós” (2011, p. 1274).

É um vaivém quase infinito de detalhes históricos para provar que a História não dá conta dos pormenores que fazem acontecer os fatos. Guerra e paz é isso, entre a impressionante e profunda capacidade de singularizar (CHKLOVSKI, 1973) o mundo, o cotidiano, os pormenores e a grandiosidade, sua técnica do romance brilha, porque joga o leitor dentro do texto e o faz caminhar pelas paisagens.


Dentro da narrativa, para comprovar a falibilidade da História e a vitória da Literatura, o autor traz esse corpo imenso de relações amorosas, construção de personagens, aprofundamento emocional das personagens, vida e morte de homens, mulheres, crianças passando frio e fome, Moscou destruída, e os salões funcionando em Petersburgo com a nobreza do Estado russo se deleitando em conversas animadas e polarizadas.

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