quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O cinema dos olhos de Cláudio Assis

A expressão “cinema dos olhos” é de Vinicius de Moraes. “Vi, com o Cinema de meus olhos, o panorama alucinante da Criação permanente”, disse ele em uma carta ao físico Giuseppe Occhialini, em 1942, sobre uma noite em Londres em que olhava o céu. Falava da dança do universo, portanto, de movimento.

Vinícius era apaixonado pelo cinema. Sua poesia, sobretudo Tríptico na Morte de Sergei Mikhailovitch Eisenstein, me fez compreender que esta é a arte de revelar instantes, porque, além de captar o movimento pelos frames e eternizá-los, todo o conjunto das cenas revela momentos que nos fazem entender um destino inteiro.

Do mesmo modo, a capacidade de pintar um quadro com as cores do real, revelando-nos um universo particular, está no cinema de Cláudio Assis. Sua trilogia inicial, Amarelo Manga, Baixio das Bestas e Febre do Rato, nos mostra um imenso amor pelos pobres.

Amarelo Manga, seu primeiro filme, faz uma leitura contemporânea acre-doce de Recife. O amarelo convertido. No lugar do ouro, a cor da febre, das feridas carcomidas, o amarelo da pele desmaiada pela miséria. Tudo cuidadosamente sugerido com imagens soberbas do anticlean fotográfico, em meio a uma riqueza de vida.

A sexualidade, a violência cotidiana, o esquecimento pelo Estado perpassam o cinema de Assis, mas nada de compaixão. Ele retrata a pobreza com amor e dureza, o lirismo escondido atrás das imagens fortes. Em Baixio das Bestas, o pobre vem preso às garras do seu algoz, a aristocracia feroz do sertão pernambucano.

Febre do Rato, em preto e branco, seu melhor filme até agora, é tão recifense. Não o Recife da alta roda, mas o dos marginalizados, com a vida rica e alegre permeando a pobreza triste. Seu amor aos pobres não tem fingimento sociológico. De origem humilde, nascido no sertão de Pernambuco, Assis é uma espécie de Kurosawa do Nordeste, não o Kurosawa das espadas e da suntuosidade, mas o das delineações singelas devotadas aos marginalizados ou fragilizados em Dodeskaden, Rashomon, Dersu Uzala e Madadayo.

Com Assis, no entanto, não há sutilezas. Ele é cortante. E justiça seja feita a Hilton Lacerda, roteirista de todos os filmes dele e de outros pernambucanos como Lírio Ferreira, de Baile Perfumado e Árido Movie.

Além disso, os filmes de Assis atraem estrelas como lâmpadas acesas puxam mariposas, um rol iluminado por Leona Cavalli, Caio Blat, Jonas Bloch, Dira Paes. Irandhir Santos, que está em Baixio das Bestas e Febre do Rato, é um ator excepcional. Seus gestos corporais, as entonações de voz e o ritmo da fala são como água no desenho do recipiente. Está à altura de Matheus Nachtergaele, um grande ator que virou fetiche cinematográfico do cineasta, seu Mastroianni, presente na trilogia do pernambucano. O cinema dos olhos de Cláudio Assis também é o dos meus.

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