terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

De onde saem as narrativas fantásticas

Minha infância no Mato Grosso foi marcada por uma Natureza exuberante. No nosso sítio, havia pés de mangas gigantes, seis deles enfileirados já estavam lá quando chegamos, e meus olhos de criança os via como árvores imensas, que demorei alguns anos para conseguir vencê-los, trepando em cada um deles.

Em 1980, quando chegamos lá, minha mãe, minha irmã e eu, só nós três (os outros ficaram para trás, porque já estudavam em Anápolis, e meu pai ainda resolvia contas finais na Ilha do Bananal, ponto pregresso de nossa diáspora) inauguramos um imaginário particular que mais tarde me ajudaria a configurar Macondo em minha solidão de leituras.

Quando chegamos lá, nossa vizinha, contou uma história cujo caráter surreal e fantástico eu mais velho viria a entender, uma história segundo a qual, um dia ela, a vizinha, passou pelo sítio que seria nosso e sentou-se debaixo de um dos pés de manga para descansar com o filho de colo. A vizinha então, cansada da caminhada que fazia, cochilou, e acordou ao som de vozes que cantavam uma canção triste. E ela, a vizinha, cantou a canção para nós.

Eu absorvia aquilo como uma verdade vindo de dentro dela, mas não conseguia acreditar, e via minha mãe ouvindo-a e fazendo caras e bocas de espanto e admiração, mas percebia de igual modo que minha mãe também não acreditava naquela ladainha, mas ouvia, ouvíamos, absortos na narrativa da vizinha.

Segundo ela, a vizinha, as vozes vinham de baixo, pelas sombras do pé de manga, e se aproximaram dela, ela que tinha a criança no colo que ainda dormia. As vozes passaram pela vizinha, que as acompanhou com o ouvido, sem ver nada, no silêncio total ao redor, um lindo coro de vozes de homens, mulheres e crianças cantando uma triste canção. As vozes seguiram rumo ao tronco do pé de manga. Depois subiram pelos galhos até a copa da árvore, e do alto seguiram cantando cada vez mais inaudíveis até o último fio sonoro além das folhas, no silente azul.

Se eu voltasse lá agora, depois de tantos prédios altos em minha retina, enfileirados em ruas compridas, uma desencadeando na outra, como no corredor de ônibus que pega a Avenida 9 de Julho, depois a Avenida Santo Amaro em São Paulo, nos levando rumo à Zona Sul, sem fim, eu me decepcionaria com os pés de mangas que certamente são menores que os que existem em minha memória afetiva.

Mas o que importa - o que me faz lembrar dessa história - é o modo como isso perdura no espiral de minha própria existência. Tudo é memória. E tudo se alimenta de novos novelos de narrativas que se construíram depois, cujos alinhavos, arraigados em mim, nem eu mesmo, esse homem feito agora, seria capaz de desfazer.

Ainda naquela época de criança, subi um dia no mesmo pé de manga até onde pude, e de lá de cima vi o horizonte afastado do campo que se formava, vi as árvores mais baixas e os capins do pasto se agitando com o vento, e me lembrei das vozes. Senti que eu subia como elas, e tive medo. Tive medo de uma epifania, hoje eu sei. E então desci, e naquele pé de manga não mais subi tão alto.

Hoje, lembrando-me dessa história, sei que as árvores de minha infância se misturam às vozes daquela narrativa, minha primeira experiência estética nascida de um conto fantástico que vinha do fundo do coração de uma mulher que desejava falar. García Márquez jamais esteve sozinho na América Latina. Eis uma das razões pelas quais amo a literatura de Márquez. Amo-a porque ela também sou eu.

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