segunda-feira, 22 de junho de 2015

Proust e os novos bárbaros

Romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido é um legado da humanidade não só pelos procedimentos inovadores nas técnicas da narrativa, mas também pelo peso com que o autor arrasta o século 19 francês e seu lastro, no comportamento, na moda, na história da arte, na política, na genealogia, até o começo ebulitivo do século 20. Segundo Walter Benjamin, “somente Proust fez do século 19 um século para memorialistas.”

Em O Caminho de Guermantes, terceiro tomo do romance de Proust, o narrador puxa a árvore genealógica dos Guermantes, mostrando o filamento secular de uma elite arraigada na história da França, deixando nas entrelinhas um argumento para historiadores, de como as sociedades e o comando do destino humano mudam. A premissa é a seguinte: quando o vento da história passa (o sopro do tempo sob a ação dos homens, dos desejos e da vontade de poder), ajuste-se aos fatos, aprenda a lê-los, ou será varrido.

Oriane, a duquesa de Guermantes, por exemplo, “alta, com seu elevado penteado de cabelos louros e leves”, de olhos azuis, é elite. Ela provém de uma família no topo da nobreza francesa há mil anos. Mas os franceses e povos adjacentes nunca foram representados pelo louro do cabelo. Esses fenótipos estão ligados aos germânicos, que um dia foram elementos estranhos na sociedade de escol do grande Império Romano, incluindo a França.

Em Sodoma e Gomorra, quarto tomo de Em Busca do Tempo Perdido, Marcel, o narrador, cita trechos em que um personagem, o príncipe real da Suécia, chamou de bávara a princesa de Guermantes, Marie, prima de Oriane. Ela não gostou da observação e respondeu melindrada: “Monsieur, não sou mais do que uma princesa francesa.” Naquela ocasião, ser loiro dos olhos azuis já era um sinal positivo diante da opinião pública, mas não para quem conhecia bem sua história de berço.

O príncipe, marido de Marie, “fazia a esposa sentar à esquerda quando passeavam de carro, porque era de sangue menos bom, embora real como o dele”, e ela mesma era chamada de princesa de Guermantes-Baviera, ou seja, da Bavária, região do alto alemão, representante direta dos godos, que até o século 4 eram tidos como grupos inferiores, disputando em filas uma vaga para adentrar o Império Romano.

Segundo o historiador italiano Alessandro Barbero, em O Dia dos Bárbaros: 9 de Agosto de 378, godos eram os germanos que viviam além dos rios Danúbio e Reno. “Eram altos e tinham cabelos louros ou ruivos, características negativas aos olhos dos romanos”, que eram “morenos e de baixa estatura. Ser alto e louro, portanto, era sinal evidente de inferioridade, de pobreza, de barbárie.”

A elite não é burra e sabe excluir. Não aceita se misturar. Nega até quando pode, nas relações e no percurso histórico, intromissões de qualquer gênero. A mistura sempre vem e muda tudo, mas à força. Como vem ocorrendo agora com os imigrantes africanos na Europa, os novos bárbaros.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 20/06/2015)

domingo, 14 de junho de 2015

Quem não ama é um simples fantasma

O amor é vário, mas deve se dividir em duas grandes categorias: o amor que se sente e o amor de que se fala. O primeiro, embora possa ser irradiante, poderoso e profundo (a depender de quem sente), é íntimo, pessoal e intransferível. O segundo é literário ou filosófico, está nos conceitos, vive no interior das palavras, nos textos, na poesia, na prosa, no fundamento estético, e é vasto.

Sempre que falamos eu te amo, corremos o risco de o outro entender o que dizemos como uma literatura particular. Do mesmo modo, o outro também corre o risco de ser tocado pelo próprio amor que sente no momento que dizemos eu te amo, quando na verdade dizemos apenas uma expressão meramente literária.

Pode parecer bobagem, ou complexo, mas isso só ocorre porque o amor mesmo é um paradoxo, tanto da moral (na subjetividade do homem), quanto da linguagem. Neste segundo sentido é que vemos poemas de amor se definirem no bojo das contradições, como em Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, para ficar no viés extraordinário da poesia brasileira.

Vinicius deixou versos como o Soneto do Amor Total: “Amo-te afim, de um calmo amor prestante/ E te amo além, presente na saudade/ Amo-te, enfim, com grande liberdade/ Dentro da eternidade e a cada instante.” Drummond escreveu coisas como as Sem Razões do Amor: “Amor é primo da morte,/ e da morte vencedor,/ por mais que o matem (e matam)/ a cada instante de amor.”

Tudo isso é literatura. Há uma infinidade de livros que analisam e comentam o assunto, como Do amor, de Stendhal, História do Amor no Ocidente, de Denis de Rougemont, passando por A Heresia Perfeita, de Stephen O’Shea, com a tese de que os cátaros inventaram o amor livre lá no século 13. Não é à toa que se diz que o amor de que se fala exerceu, e exerce, uma influência demasiada sobre o amor que se sente.

Na filosofia, o amor é objeto de interesse desde os gregos. Em todo caso, não muito distante de nós, um filósofo russo francófono, Vladimir Jankélévitch, debate o significado da moral e seus elementos no livro O Paradoxo da Moral, em que diz que o amor dá maleabilidade ao ser, mas em uma cadeia de paradoxos dentro da qual o homem precisa se equilibrar.

Por usar a lógica para explicar a moral como o principal problema filosófico existencialista, o livro de Jankélévitch é complexo, mas traz uma musicalidade ímpar. Pode ser lido como quem toca uma sinfonia de sentidos, em que o amor é emparedado pela lógica e se salva pelas contradições.

Em suas observações sobre o amor, vemos refletida a poesia de Vinicius e de Drummond. “O amor infinito, com sua abnegação infinita, tem necessariamente como sujeito um ser finito.” Eis o sofrimento. Ou: “Para amar é preciso ser, mas para ser é preciso, antes de tudo, amar: pois quem não ama é um simples fantasma.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 13 de junho de 2015)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Sobre dores e talvez delícias

Os romances do escritor americano Philip Roth sempre apresentaram personagens vigorosos, intensos, com os quais o autor trouxe à tona uma América cheia de dores e traumas, umas almas feridas, replenas de desejos e taras. Nas tramas da meia idade rumo ao envelhecimento, juntou-se a isso um medo eterno do câncer.

A temática da sua obra é um corpo cintilante carregado de sexo, incesto, condição judaica, política americana, sociedade americana, os medos, os delírios, os fracassos. Toda a literatura de Roth é um convite para um banquete literário em que está posta à mesa uma variedade de textos e citações.

Suas narrativas apontam perspectivas plurais, abordando vários pontos de vistas, oferecendo sempre um ou mais segredos absconsos na personalidade humana. Nessa pluralidade também está o tema da velhice, principalmente em dois grandes romances, um em cada lado dos dois de seus principais narradores, David Kepesh e Nathan Zuckermann, respectivamente, Animal Agonizante e Fantasma Sai de Cena. O corpo e o espírito no corpo decadente, “rebelião orgânica na qual o corpo se levanta contra o idoso.”

Em Fantasma Sai de Cena, Nathan Zuckermann, famoso escritor judeu narrador de vários dos romances de Roth, aparece com 71 anos, recém-curado de um câncer de próstata. A cura lhe rendeu uma incontinência urinária que o faz usar fraldas geriátricas. Havia se afastado de Nova York e se isolado no interior por mais de dez anos. Volta para consultar um urologista e acaba conhecendo mulheres e homens mais jovens do que ele, entre os quais está Jamie, de 30 anos, bonita e inteligente, com um sexy appeal extraordinário.

Por causa dela e por um fantasma do passado, a mulher de seu ídolo da juventude a quem desejou silenciosamente e agora está velha como ele, curando-se de um câncer, como ele o fizera, decide regressar a Nova York por um tempo. Nesse romance, Roth quer falar da velhice e das consequências do corpo envelhecido, mas quer falar também da contemporaneidade, da urgência simultânea da vida, do conflito de gerações, em dois níveis: velhice contra juventude e novos escritores contra o cânone - o cânone que cada geração cria.

Por causa da velhice, incompatível com a celeridade das coisas, Zuckermann faz uma espécie de descrição das impossibilidades, não pela carência material ou intelectual, mas pela passagem do tempo e a decadência física, que é quando se olha para todos os lados, inclusive para trás, e não se vê nada além de um imenso vazio, impossível de atravessar.

Philip Roth é um professor. Mais que um mestre dos desejos, é um tutor de espíritos que se interessam pela vida, que a acompanham pela luz da estética, das grandes lições dadas por uma inteligência superior. No meio da vida, se eu tiver a dádiva (e a missão) de envelhecer, continuarei tendo com este homem conversas sobre dores e talvez delícias.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 30 de maio de 2015)