terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Batista de Pilar com a casa nas costas

                                       Foto: Gilberto G. Pereira
Batista de Pilar, poeta curitibano: “Que sorte! A morte deu uma distraída./ Ela foi para o Sul/ e eu fui para o Norte” 



De Curitiba

Curitiba é uma cidade reveladora de talentos, tanto do mainstream quanto de rua. Os do mainstream todo mundo conhece e bajula, já os artistas de rua, embora muitos sejam reconhecidos pelos curitibanos atentos, vivem o cotidiano sem glamour, e alguns deles amargam dificuldades de subsistência.

Como se sabe, artistas de rua são aqueles que não têm estrutura institucional para vender seu produto, como  casas de show, livrarias, gravadoras, galerias, mostras, festivais, empresários que os representem. Eles é que vão de porta em porta, ou se instalam mesmo nas ruas para oferecer seu trabalho.

Eu e meu cunhado curitibano, Diego Rezende, estávamos fotografando o Largo da Ordem, e eis que conheci um desses artistas, o poeta Batista de Pilar. Conheci-o de vista, em meio a um rápido papo. Ele já era conhecido do Diego, e estava sentado num degrau de porta de bar (fechado).

Alcoólatra, desempregado, sem dinheiro pra pagar o aluguel, andava com uma mochila nas costas. Sempre viveu na corda bamba. Costumava se sustentar com o suor da palavra, com seus livros e eventos de cultura. Mas agora estava literalmente na rua, num momento em que sua poesia não lhe  rendia nenhuma grana.

Há o lado dramático desta história, mas há também o lado lírico. Ao ver o poeta com aquela mochila, sem ter onde morar, lembrei-me do escritor argentino Julio Cortázar (1914 – 1984), segundo o qual, a casa do escritor é sua bagagem interior. “Os verdadeiros escritores são como caracóis – carregamos a nossa casa nas costas”, diz Cortázar.

Materialmente, Pilar estava mal. No entanto, havia em sua condição um substrato filosófico, que não enchia sua barriga, é verdade. Neste sentido, o poeta estava em casa. Andava mergulhado na linguagem. Segundo ele, estava em vias de imprimir numas centenas de camisetas um de seus poemas para vender e amealhar um dinheirinho.

Ele recitou o poema:

“Que sorte,
mas que sorte!
A morte deu uma distraída.
Ela foi pro Sul
e eu fui pro Norte.”

Fiquei interessado nos versos do poeta. Parece Leminski, pensei. Vi que ele carregava um livro entre seus pertences, um livro fino que retirou da mochila e começou a folhear. Príncipe sem trono (85 páginas), era o título. A diagramação é irreverente, em que o leitor precisa virar o livro de cabeça pra baixo e folheá-lo a partir da quarta capa. “É minha publicação recente”, disse o poeta. Quer vender, perguntei. “Bota preço”, respondeu. “Diz quanto você quer dar”, completou.

O livro já estava meio puído. As folhas, um pouco gastas, denunciavam a insistência do poeta em mostrar os poemas às pessoas, ou talvez já eram o resultado de uma repetida virada de páginas, na tentativa de reafirmar a própria existência. “Me perco/ no pulsar/ da veia/ onde circula/ a palavra”, diz um dos poemas. “Pinga/ pingo d’água/ num alambique/ de mágoas”, diz outro. Ofereci R$ 20. Ele aceitou.

Naquele dia de passeio pelo centro de Curitiba, havíamos fotografado a Praça Tiradentes, o Largo da Ordem,  focando detalhes como os prédios antigos, a Igreja do Rosário, as fachadas históricas dos logradouros em paralelepípedos, o Museu Paranaense, cujo acervo é belíssimo e informativo sobre a história e a cultura do Paraná.

Todas as visitas daquele dia foram ótimas, mas nada me agradou mais do que ter conversado com aquele poeta, e sua poesia errante, consumindo a rua que o consome, insistindo em surgir do nada, resistindo. Naquele dia, nada foi mais interessante do que ter comprado seu livro, que fará parte de minha biblioteca.


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