sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O barco das crianças: uma metáfora sobre a infância e o tempo


O peruano prêmio Nobel de Literatura de 2010 Mario Vargas Llosa dispensa apresentações. É um dos escritores latinos mais lidos no mundo. O que pouca gente sabe é que ele já lançou  dois livros para o público infanto-juvenil. O segundo saiu no Brasil no ano passado pela Alfaguara, O barco das crianças (tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, ilustrações de Zuzanna Celej, 105 páginas).

Publicado originalmente em 2014, O barco das crianças  é inspirador porque sai do clichê segundo o qual livro de criança deve falar de aventuras leves, sem abordar temas tabus como a morte. No centro de sua trama está o problema da existência e da passagem do tempo.

Flertando com um questionamento filosófico sobre as irrevogáveis e irretornáveis etapas seguintes da vida, depois da infância, indo do amadurecimento à velhice, e consequentemente à morte, o romance narra o encontro de um menino, num parque a beira-mar da cidade peruana de Barranco, com um velhinho sentado num banco observando o oceano.

O velho não se identifica, nem diz a idade, mas deve estar na casa dos 90 anos (ou talvez multiplique isso por dez). Fonchito, o menino protagonista, já é conhecido do público juvenil de Llosa do primeiro livro infantil, Fonchito e a lua, e do público adulto também. Essas histórias infantis são recuadas no tempo, afinal, Fonchito é o filho crescido de Don Rigoberto, personagem do romance Os cadernos de don Rigoberto.

A trama começa quando Fonchito passa a observar aquele velhinho naquele banco, toda manhã quando sai para a escola. Enquanto espera o ônibus, o menino ouve curioso a história do ancião. Todas as manhãs.

“Venho ver se o barco das crianças aparece”, diz o velho. Esse barco zarpou do Porto de Marselha, na França, com crianças de vários países da Europa, imbuídas de um tremendo sentimento religioso, rumo a Jerusalém. Viajaram dispostas a lutar nas cruzadas para expulsar os mouros (muçulmanos) da Terra Santa, no século XII.

Mas o navio se desviou da rota original, por razões que o leitor saberá, passou pelo Estreito de Gibraltar e ganhou as águas oceânicas. Do século XII até agora (900 anos), a embarcação estaria navegando pelos sete mares, sem que o tempo passasse para os meninos.

O barco das crianças é, portanto, uma aventura humana, de imaginação alada, em que garotos singram os sete mares à procura de um norte chamado Jerusalém. Mas é também uma metáfora sobre a infância, quando achamos que o tempo demora a passar e encaramos a vida como se fosse eterna para nós. Uma vez fora do barco, perde-se a propriedade lúdica da vida, e caminha-se rumo ao fim.

Duas figuras emprestadas de outras literaturas aparecem nesta obra de Llosa: a Terra do Nunca, de J. M. Barry, onde os garotos perdidos, liderados por Peter Pan, jamais envelhecem; e o ambiente infantil da aventura medieval de Marcel Schwob (1867-1905), no romance A cruzada das crianças, que inclusive é citado pelo autor peruano na epígrafe.

O barco é uma espécie de Terra do Nunca, e os meninos dentro dele são evocações do livro de  Schwob. A trama bem urdida é uma marca do domínio técnico e de linguagem do autor. O barco das crianças, portanto, é uma grande lição para leitores de qualquer idade (repetindo aqui um velho clichê).


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