segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Gay Talese e os fracassos mais bem-sucedidos da história


Assim que o livro de Gay Talese, Vida de escritor (Companhia das Letras, tradução de Donaldson M. Garschagen, 2009), foi lançado no Brasil, houve quem não gostasse da leitura. “Não sei por que rasgam tanta seda para Gay Talese”, diziam.

Quem não gostou, pode não ter gostado por uma questão estética, mas não se pode negar a qualidade do livro de Talese, com o acurado vaivém do texto e seus meneios.

O autor intercala informações sobre seus assuntos de interesse, técnicas de apuração, técnicas narrativas. Pode ter ficado puxado para alguns leitores mais jovens. Talese discorre sobre seus interesses múltiplos, diversidade que lhe dá trabalho para conferir, inclusive.

Os temas vão se acumulando em função de sua demora na apuração e na redação: restaurantes, esporte, vida familiar, imigrantes, conflito racial. A vida correndo entre as capas do livro, uma vida de jornalista e escritor.

Uma vez que Vida de escritor trata da própria trajetória de Talese, dá para entender porque a narrativa é cheia de fiações complexas, indo e vindo em torno de tantos assuntos que se entrelaçam e respiram às vezes no desfecho de algum fio.

Seu relacionamento conjugal, suas amizades, o modo como lida com a tecnologia e como a tecnologia influencia na sua maneira de trabalhar também estão imbricados ao longo das 510 páginas.

Talese se coloca como um fracassado em seu próprio livro, quer dizer, escreve do ponto de vista de seus fracassos mais do que de sua carreira vitoriosa como jornalista e escritor de sucesso, autor de vários best-sellers como Fama e anonimato, Honra teu pai e A mulher do próximo. Seu livro mais recente é O voyeur, de 2016.

Em Vida de escritor, ele começa e termina o livro com a mesma história de uma derrota: o caso da jogadora de futebol chinesa Liu Ying, que errou o pênalti e cedeu a vitória à seleção americana no final da Copa do Mundo de Futebol Feminino, nos EUA, em 1999.

A maioria das páginas é dedicada a investimentos em pautas fracassadas, o que dá ao livro uma orientação estética interessante. Junto com a busca pela essência de Liu Ying e sua derrocada em plena disputa de pênaltis, o autor ainda coloca no centro de sua narrativa a história de uma mulher que cortou o pinto do marido.

Saga peniana

Aos 60 anos e com best-sellers publicados, em 1993, Talese escreveu um texto de 10 mil palavras sobre o caso do pinto ceifado. Era um freelance a ser publicado na revista Vanity Fair. Fez uma abertura fantástica, citando o romance Germinal, de Émile Zola, que fala da vida dura dos mineradores franceses do século XIX, em que um grupo de mulheres capa um homem.

Depois, ele inicia o texto propriamente:

“Esta semana, a nação que oficialmente tem horror a sexo e violência, mas nunca se sacia disso, poderá se fartar com a lavagem de roupa suja pela televisão protagonizada pela sra. Lorena Bobbit, moça pessimamente casada que, dizendo ter sido vítima de abuso sexual praticado por seu marido, um fuzileiro naval, vingou-se utilizando uma faca de cozinha de cabo vermelho e trinta centímetros de comprimento (comprada na loja de artigos para o lar Ikea, em Woodbridge, Virgínia), com a qual decepou dois terços do pênis do marido adormecido.”

O texto era bom. Não é qualquer jornalista que abre a reportagem com uma frase certeira dessas, acusando os EUA de serem “a nação que oficialmente tem horror a sexo e violência, mas nunca se sacia disso.”

Sua editora Tina Brown, no entanto, não gostou do texto e não o publicou. “Sinto que não li nada de novo sobre o casal além do que já sabia da leitura de jornais”, disse a chefe. Desapontado, Talese tentou argumentar: “Você diz que não leu nada além do que já sabia – mas a maior parte dessas coisas você soube por mim.”

Irredutível, a editora respondeu com tom de ponto final: “Devemos nos despedir de uma vez por todas dessa saga peniana para você se dedicar a algo mais compensador. Vamos tentar criar alguma coisa mais digna de suas energias.” Ou seja, dane-se seu interesse por um pinto cortado. Vida que segue.

Na fileira da chinesa que não soube chutar no momento decisivo, do mal cortado pela raiz, Talese narrava também sua heroica apuração sobre restaurantes em Nova York, que não deu em nada até agora. Os arquivos da apuração, no entanto, estão guardados. Eis que de repente pode surgir um livro novo, que todo mundo quer ler, sobre o mundo da gastronomia nova-iorquina, os sucessos e fracassos de restaurateurs.

O drama do fracasso

Gay Talese é um jornalista vencedor. Ninguém chega ao cargo de diretor de redação do New York Times sem lastro. Ninguém escreve vários livros que servem como modelo de uma linguagem como quem pega um bonde errado e chega ao paraíso.

Por que então esse plasma da derrota em seu livro? A resposta é simples: porque em toda sua vida de escritor, ele perseguiu os fantasmas dos derrotados anônimos, arrancando deles as notas dramáticas que compuseram suas existências.

Além disso, Talese quer deixar claro que na vida de escritor, para cada sucesso há uma sucessão de fracassos que ficam escondidos ou são ofuscados pelos holofotes do êxito. Ele trouxe para primeiro plano essa experiência.

Uma de suas influências de jornalismo literário é Na pior em Paris e Londres, de George Orwell, publicado quando o termo ainda não havia sido cunhado, que narra a história de fracassados.

O livro de Talese expõe também as dificuldades de apuração e de encontrar uma boa história, pela qual muitas vezes se gasta tempo em demasia, tempo que o jornalismo nunca tem. “É importante reconhecer que durante os quarenta anos de minha carreira como escritor-pesquisador eu investi pesadamente na perda de tempo”, escreve.

Consciência literária

Nas primeiras páginas, quando Talese está explicando como passou do jornalismo de hard news (com lead e sublead definidos) para um texto literário sem perder a veracidade dos fatos, ele esquematiza uma tese sem dizer exatamente com todas essas palavras: jornalismo literário é o texto jornalístico que cobre um fato com seus pormenores e detalhes, com ambientação e diálogo tão meticulosos e certeiros em seu acabamento que a verdade do que está sendo dito ultrapassa a importância de ser ficção ou realidade.

Toda narrativa é uma construção, utilizando-se de elementos que se debatem numa armação de tempo e espaço. O jornalismo difere da ficção porque o repórter se depara com um fato, e diante dele pergunta, e precisa reportar as respostas que obteve, muitas delas não sendo fáceis de obter, para muitas delas sendo necessário se valer da imaginação - para perguntar melhor e buscar uma resposta mais apurada.

Às vezes, é necessário se imaginar mais do que se vê, em termos de espaço, detalhes e diálogos, sem dúvida. Mas as normas de exatidão do jornalismo precisam segurar a história toda como colunas sustentando um edifício.

Quando Talese diz “construo personagens como meio de refletir aspectos da história de um tempo e de um lugar que os historiadores costumam desdenhar”, essa construção a que se refere traduz a medida do seu trabalho. Além disso, mostra que ele atua como um historiador das pequenas coisas, um cronista das derrotas cotidianas. Por isso seus livros são bons, e este, revelador de sua técnica.

Está impressa na narrativa não só o modus operandi do escritor, mas uma complexa consciência literária, isto é, o espírito investigativo que vai juntando coisas ao longo do caminho da vida para forjar uma história. “Muitas vezes, escrever é como dirigir uma caminhão de noite, sem faróis, errando o caminho e passando uma década numa vala.”

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