segunda-feira, 17 de julho de 2017

O RH do automatismo no romance A questão humana

Cena do filme A questão humana, baseado no romance homônimo de François Emmanuel: thriller psicológico em ambiente corporativo    

A literatura raramente cria boa ficção para tratar de um problema que afeta cada vez mais a sociedade moderna: a falta do sentimento humano nos departamentos de Recursos Humanos, principalmente das grandes corporações. Mas deveria. Afinal, todo mundo sabe que a maioria dos investimentos no quadro de pessoal é para acirrar o espírito de competitividade.

O cinema é mais corriqueiro nesta abordagem, e está sempre aparecendo com filmes sobre o assunto. O corte, do grego Costa-Gavras, de 2005, é um bom exemplo. É sobre um alto executivo desempregado que começa a matar seus potenciais concorrentes para uma vaga de emprego. Mais espírito de competitividade do que isso não existe.

Em 2007, o cinema francês lançou outro filme que trata do mesmo tema, com uma perspectiva diferente, mas ainda falando do comportamento robotizado, sem alma, da burocracia capitalista. O roteiro é uma adaptação do tema desta resenha, o romance A questão humana (Estação Liberdade, 2010, 84 páginas, tradução de Maria Appenzeller), do escritor belga François Emmanuel.

Como se vê pelo número de páginas, A questão humana é um pequeno romance-ensaio sobre a extirpação dos traços ligados ao afeto, à compreensão, ao humor e à consciência de que este se altera por vezes, sob determinadas circunstâncias.

Numa grande empresa, na vida sistematizada em torno de uma linha de montagem, o espírito é subjugado ao mecanismo da competição, e a questão humana deve ser eliminada. Só o que interessa, no fim das contas, é que o funcionário faça seu trabalho, e da melhor maneira possível.

Thriller

O livro de Emmanuel também resgata a ameaça de um discurso muito evocado na defesa dos carrascos do Nazismo: “Fiz apenas o meu trabalho”. No filme A grande aposta, quando a especulação imobiliária atingiu o fluxo das ações dos outros setores e o mercado financeiro pôs tudo abaixo, na crise de 2008, os corretores eram os primeiros a dizer: “A culpa não é nossa, é só o jeito como o mundo funciona.” Mas esta é outra história (thriller corporativo)

A questão humana é um thriller psicológico. O leitor brasileiro já está acostumado a esse subgênero por causa do sucesso de romances como Quando Nietzsche chorou e A cura de Schopenhauer, de Irving D. Yalom, livros que abordam questionamentos intelectuais, crise existencial.

Na trama belga, Simon narra a experiência de ter se metido numa intriga psicológica envolvendo dois diretores de uma empresa alemã, na filial francesa, onde fora contratado para fazer a seleção de pessoal e planejamento de seminários.

Como psicólogo, Simon tinha a missão de “despertar nos participantes a agressividade natural”. Mas certo dia, é solicitado por um dos diretores, Karl Rose, para uma missão diferente e paralela, a de investigar o estado de saúde mental de Mathias Jüst, outro executivo, sob a alegação de que o homem poderia estar doente e, neste caso, comprometeria o andamento da empresa.

Para manter o suspense, o autor se utiliza de uma série de técnicas tradicionais da literatura, misturando elementos narrativos como cartas, telefonemas, recados e visitas pessoais que sugerem novas pistas que vão revelando, aos poucos, uma rememoração do passado, da Segunda Guerra Mundial, dos absurdos nazistas, de sua burocracia precisa e macabra.

Máquina

O romance é criado em cima de uma teia perigosa de sugestões, mas de valor real. Seu conteúdo sugere que o fator humano nas grandes empresas é o que menos importa. O departamento que cuida do quadro de pessoal das empresas ainda chamado de RH parece estar preocupado em extrair do profissional só seu potencial de máquina, de autômato, de repetição robótica.

Neste caso, a questão humana é quase um desvio de conduta, uma doença. Como se o curso d’água houvesse desviado da horta aquilo que há de nutriente nas plantas. O interessante é que tanto a vida real quanto a ficção apenas corroboram o que pensadores e artistas já tinham preconizado na primeira metade do século XX, como Charles Chaplin, em Tempos modernos, e Aldous Huxley, com Admirável mundo novo, sempre considerando as diferentes perspectivas.

François Emmanuel tem 64 anos. É médico psicoterapeuta e autor de diversos livros, entre romances, contos e poesia, muito lidos na Europa. No universo das letras, no entanto, a Bélgica é mais conhecida por autores de livros técnicos, como Tratado da argumentação, do renomado jurista Chaïm Perelman.

Aqui no Brasil, duvido que exista um estudante de direito sério que não conheça Perelman. Até mesmo para os interessados em retórica literária, ele é recomendável. No caso da literatura, além da dica do romance de Emmanuel, é indispensável o acesso à obra de Amélie Nothomb, a escritora belga mais conhecida nos dias de hoje.

Amélie já foi a garota prodígio da literatura belga, embora tenha nascido em Kobe, no Japão, por ser filha de um embaixador. Hoje está com 51 anos de idade. Causou furor na cena literária de língua francesa aos 25, quando lançou Temor e tremor, que narra o drama dentro do japanese way of life, outra trama envolvendo o universo do trabalho como fulcro.

(Recuperação de um texto iniciado em 2010)

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