domingo, 25 de março de 2018

Depois da tempestade, a responsabilidade

Ryota (Hiroshi Abe) com o filho Shingo (Taiyô Yoshizawa) e a ex-mulher Kyoko (Yoko Maki):
a sentença fulcral é a frase “não é fácil se tornar o homem que a gente gostaria de ser”
    

Se o cinema é arte, ele não existe para passar mensagens edificantes ou de qualquer natureza. Se o cinema é arte , ele não tem uma finalidade, ou uma utilidade, seu fim é em si mesmo. Mas como toda arte, é produzido por humanos para consumo humano, e um ser humano que se preza sempre vai empregar algum significado para qualquer coisa que veja.

Do mesmo modo, mesmo sem querer, o artista, que também é humano, enfileira em sua obra um ror semântico de coisas ditas, por trás das quais, ou na frente, há um mundo a ser interpretado. Afinal, se há uma narrativa, há uma história, e se há uma história, encontramos significados. Mesmo numa linguagem do tipo nouvelle vague (no cinema) ou nouveau roman (na literatura).

Alguns filmes são mais complexos em sua estrutura, como os escritos e dirigidos por Peter Greenaway, que quer ser uma espécie de Rembrandt do movimento, com filmes como O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante e Livro de cabeceira. Mas outros querem de fato contar uma história, da qual se pode extrair um questionamento ético, além do corpo estético que se vai criando.

Depois da tempestade, filme japonês de 2016, escrito e dirigido por Hirokazu Koreeda, é uma dessas obras magníficas que não querem ser aves de voos altos, mas que, por isso mesmo, nos oferecem novos lances no modo de olhar para o mundo.

O filme narra um drama familiar muito comum, sobre um pai, Ryota Shinoda (Hiroshi Abe), separado, que quer continuar vendo o filho, Shingo Shiraishi (Taiyô Yoshizawa), mas não paga a pensão porque gasta sua curta grana apostando em corridas de cavalo.

Mensagem fulcral

Ryota é um sujeito com talento literário, que publicara um livro premiado pela crítica, mas que vive sem grana. É um escritor decadente de um livro só. Enquanto tenta escrever o segundo romance, ganha a vida fazendo bico como detetive e pedindo dinheiro emprestado para a mãe, já velhinha.

Sua mãe, viúva, não perde a oportunidade de criticar o marido morto, que também não conseguiu fazer nada da vida. O filme tem duas horas de duração, que é o tempo mínimo para uma produção japonesa, mas é em um diálogo de poucos segundos que vemos a mensagem fulcral e arrebatadora da película.

Numa discussão, um garoto que havia sido investigado por Ryota, a pedido do pai, provoca o protagonista dizendo: “Não quero ser um vagabundo feito você, quando eu for homem.” E nosso herói responde com raiva: “Escuta aqui, seu moleque, não é fácil se tornar o homem que a gente gostaria de ser.”

Um homem consciente de si na modernidade líquida sente o baque na hora, identifica-se com a frase do personagem, e acena com a cabeça, concordando. Ryota estava naquela situação porque tentou ser o que queria ser, tentou ser livre de amarras, mas havia tecido laços afetivos antes, fazendo um filho, e aí, ao tentar ser o que queria ser, sendo ao mesmo tempo o pai de Shingo, não dava certo. Era preciso mudar o modo como se jogava, e ele não estava percebendo isso, como raramente o percebemos.

Óleo sobre tela

Ao tentar refletir sobre as razões de seu fracasso, Ryota via sua ex-mulher vivendo a vida dela sem percalços e ficava intrigado. “As mulheres são mais óleo sobre tela que aquarelas”, disse-lhe uma colega de trabalho. Ou seja, não apagam o que já viveram, vivem por cima do sentimento anterior um novo sentimento, não substituem o antigo.

As mulheres, quando sabem o que querem ser, fazem as coisas de modo diferente, mas sem apagar nada, apenas escondem a mancha negativa e afirmam a parte do passado que lhes agrada. Os homens não conseguem essa destreza, e acabam negando a essência da própria existência.

No caso de Ryota, ele não nega o próprio filho, não presencialmente, ele está lá. Ryota vai visitá-lo. Mas num lance de auto-sabotagem – como a incapacidade de poupar dinheiro, viciado em jogo, fazendo bicos sem procurar um trabalho e ao mesmo tempo sem escrever o livro que dizia que escreveria –, nega a responsabilidade de ser pai.

O que falta a Ryota é um senso ético. Mergulhado numa preocupação estética da vida, ele perde a dimensão de ser responsável. Acontece que a vida também é uma arte, mas em vez de se fazer no campo estético, é uma arte inventada na esfera do ético. “Nossas identidades (ou seja, as respostas às perguntas ‘Quem sou eu?’, ‘Qual é meu lugar no mundo?’, ‘Por que estou aqui?’) precisam ser criadas, tal como são criadas as obras de arte”, diz o sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman.

Ryota não precisava deixar de procurar ser o que queria ser, bastava mudar o rumo da prosa e entender que não era deixando a vida levá-lo que seria o homem que gostaria de ser. E essa é a parte mais difícil. “Ser artista significa dar forma e condição àquilo que de outro modo seria sem forma ou aparência”, ensina Bauman em A arte da vida.

Como há diversas maneiras de preencher essa essência, o caminho mais difícil é justamente aquele em que assumimos as reponsabilidades morais. Esses vínculos requerem uma preocupação verdadeira com o outro e uma consciência de que o que faço da vida tem impacto direto nos que me cercam, e indireto nos  mais distantes.

No filme de Koreeda, há uma tempestade imensa quando Ryota e a família estão na casa da mãe dele, e começam a passar a vida a limpo. Depois disso, veremos o que sobra.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 25 de março de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)


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