segunda-feira, 19 de março de 2018

Por que a etimologia é fascinante?

Escultura de Sócrates em Atenas, onde nasceu e morreu o filósofo: juízo é crisis; a filosofia se instala na crise do ser

Há muitos livros sobre a origem das palavras, que às vezes oferecem uma narrativa interessante. Deonísio da Silva, por exemplo, fez muito sucesso com A vida íntima das palavras e De onde vêm as palavras. A origem curiosa das palavras, de Márcio Bueno, e Com a língua de fora, do jornalista Luiz Costa Pereira Junior, também são exemplos de relatos fascinantes sobre etimologia.

Mas há também outros modos de se ir buscando o significado original e o significado acumulativo dos vocábulos. Muitas vezes, basta consultarmos um bom dicionário, como o Houaiss, para descobrirmos a origem etimológica com certa dose de acerto e boa descrição. As obras sobre mitologia grega também têm um acervo e tanto de significados, sem contar a imbatível internet, com alguns cuidados para não se comprar gato por lebre.

O arsenal de palavras terminadas em –ulo, prefixo de origem latina que indica o diminutivo, a redução de tamanho de alguma coisa, é um deleite, como ósculo (de oris, boca, logo, boca pequena, e por associação, beijinho), opúsculo (pequena obra), currículo (pequeno atalho, porque vem do latim curru, que quer dizer correr, corrida, carro, lugar onde se corre, caminho, logo, a carreira exposta em tamanho reduzido, por isso mesmo, currículo em inglês é resume, ou résumé, como no francês), músculo (lagarto pequeno) e crepúsculo (baixa definição de qualquer coisa, inclusive da luz).

Furúnculo tem essa mesma lógica, e uma descrição interessante. Vem do latim furis, ladrão, logo, pequeno ladrão, denominação emprestada da botânica, segundo o Houaiss, que define o broto secundário de uma videira como “ladrãozinho”, quando “se desenvolve a expensas dos ramos principais, furtando-lhes a seiva”, a partir de um botão que nasce na superfície do ramo principal.

Os artistas plásticos devem gostar de flertar com a etimologia porque ela possibilita novas perspectivas diante do tema escolhido. Uma palavra, cavada até seus registros fósseis, pode se desdobrar em imagens magníficas para a compreensão da história do pensamento e das artes.

Na filosofia, por exemplo, a palavra juízo é muito importante. Quando descobrimos que juízo em grego é crisis, e que este vocábulo também significa peneira, vislumbramos uma olhar para o ofício de pensar filosoficamente com interesse renovado em sua busca amorosa da verdade, mas sempre com uma inquietação, porque a filosofia se instala na crise do ser. A busca pela verdade é sempre crítica. E, no fundo, ao descobrir o caráter oscilante da verdade, o pensador verá que essa crise nunca termina.

Outra palavra na linha da filosofia da linguagem, por assim dizer, é estesia, que significa capacidade de captar as coisas no mundo passando diretamente pelos sentidos, sem mediação das palavras ou pelo uso da razão, a priori. Evidentemente, toda arte se sistematiza, mas não exige de quem contempla uma erudição prévia, porque se trata da contemplação da beleza enquanto categoria essencial da obra (nas suas diversas vertentes como feio, cômico, trágico, sublime, grotesco etc.). Daí a palavra estética, que define a arte.

O vocábulo anestesia também vem de estesia, pela sua negação, pois quando aplicada em qualquer animal, inclusive no homem, este perde um ou todos os sentidos por um tempo. Sinestesia se instala nessa fileira etimológica, que é quando um sentido invade o outro, como na expressão “a cor do som”, por exemplo, ou no título de um dos volumes da autobiografia de Elias Canetti, Uma luz no meu ouvido.

A etimologia é fascinante por isso, porque revela segredos da língua, e garimpa os tesouros da linguagem, escondidos pelas camadas do tempo, escamas de novos hábitos que vão puxando o significado para outros rumos. Os hábitos são ventos que levam as palavras para novas paisagens.

A fruta maracujá esconde em sua anatomia um significado cristão, não pelo vocábulo indígena moroku’ya, que no tupi talvez queira dizer “fruta cheirosa”, mas por outro nome que a designa, “flor-da-paixão”, como “passionfruit”, em inglês, que, ao contrário do que se possa imaginar, não tem a ver com amor ou sensualidade, mas com a Paixão de Cristo. As flores do maracujá têm órgãos que remetem à coroa de espinhos e aos cravos, instrumentos usados na crucificação de Jesus.

Os gregos encontraram uma maneira muito significativa de explicar  a duplicidade sexual em algumas pessoas, chamando-as de hermafroditas. O nome em si tem uma composição simples e significa filho de Hermes e de Afrodite. Mas a história recuperada em sua arqueologia é que é fabulosa.

Para agradar a seu filho mais engenhoso, o gênio do Olimpo, Hefesto (Vulcão em Latim), Zeus o casou com Afrodite, a deusa do amor, bela e fogosa, que teve casos com muitos deuses e mortais, traindo o forjador de mundos várias vezes. Uma dessas traições foi com Hermes, com o qual teve um filho chamado Hermafrodito. O garoto “era dotado de uma beleza tão grande como a de Narciso.”

Por onde andava, Hermafrodito fazia as mulheres caírem de amor. Um dia, aos 15 anos, viajando pela Ásia Menor, foi até um lago onde morava uma ninfa chamada Sálmacis, que ficou completamente apaixonada por ele assim que o viu. O rapaz a repeliu e foi tomar banho. Ela fingiu que havia se conformado.

“Mas quando Hermafrodito se despiu e se lançou às águas do lago, Sálmacis o enlaçou fortemente e pediu aos deuses que, para sempre, lhes unissem os dois corpos em um só. Os imortais ouviram-lhe a súplica e, assim, surgiu um novo ser, de dupla natureza”, diz Junito de Sousa Brandão, em seu livro “Mitologia Grega, Vol. II”.

Anfitrião é outra palavra interessante, cuja história tem um desfecho terrível, principalmente para os defensores de Hera, guardiã do matrimônio e da lealdade. A etimologia do vocábulo é incerta, apesar de o prefixo amphi (ambos os lados) ser conhecido do português em palavras como anfíbio e anfiteatro. Talvez seja “aquele que ofende em qualquer lugar”.

Em todo caso, Anfitrião era rei de Tebas. Casou-se com Alcmena, mas antes da noite de núpcias, estando à frente de uma guerra, longe de casa, sua mulher foi visitada por Zeus, que queria fazer um filho que fosse herói na terra. Sabendo da lealdade de Alcmena ao marido, Zeus não teve dúvida, travestiu-se de Anfitrião em todos os pormenores, inclusive com a memória da guerra, citando todos os detalhes das batalhas.

A palavra anfitrião, que hoje significa “aquele que oferece e paga as despesas de uma festa”, ou “o dono da casa, que recebe os convidados para qualquer evento”, veio do nome próprio desse rei de Tebas, que foi registrada em várias peças de teatro, como a de Plauto e de Molière, de onde a palavra ganhou vida nos salões de Paris. Mas em Tebas (sempre Tebas), foi o rei traído por Zeus.

Junito de Sousa Brandão, descreve bem a cena do enlace amoroso entre Zeus e Alcmena, do qual nasceu Héracles (Hércules). “Foram três noites de um amor ardente, porque, durante três dias, Apolo, por ordem do pai dos deuses e dos homens, deixou de percorrer o céu com seu carro de chamas.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 18 de março de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)

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