domingo, 4 de março de 2018

Sobre deuses e monstros

Filme deve ser visto não como “A Bela e a Fera”, mas como uma grande metáfora sobre a arbitrariedade
dos tomadores de decisão, que decidem inclusive quem é monstro e quem é humano

Um filme que conseguiu desenvolver três grandes personagens secundários, além da protagonista, não pode ser descartado, mesmo que entendedores gabaritados por anos a fio estudando o cinema imponham sua autoridade para criticá-lo. E é por isso que alguma coisa resiste dentro de A forma da água, filme de Guillermo del Toro, que concorre ao Oscar esta noite em 13 categorias, inclusive a de Melhor Filme e Melhor Direção.

Há bons títulos na disputa por Melhor Filme. São nove no total. Quase todos com tramas recuadas no tempo, como quem foge da realidade pouco encantadora dos dias de hoje. Me chame pelo seu nome, é ambientado na década de 1980, na Baixa Guerra Fria, embora fale de afeto e sexualidade. The Post - a guerra secreta, de Steven Spielberg, narra uma história baseada em fatos reais da década de 1970.

Trama fantasma e o próprio A forma da água caem na bitola da Alta Guerra Fria da década de 1950, e se juntam a Dunkirk e O destino de uma nação. Os dois últimos falam da Segunda Guerra Mundial, e versam sobre o mesmo tema particular da luta, a Operação Dínamo, mas sob pontos de vista diferentes.

Os outros três são Lady Bird - a hora de voar, Três anúncios para um crime e Corra!. Os dois primeiros estão enfurnados nos conflitos atuais, a luta pela construção de uma identidade e a violência urbana. E o terceiro aborda um futuro distópico, em que negros americanos se tornam vítimas da elite branca de uma maneira invulgar.

À exceção de Dunkirk e Me chame pelo seu nome, todos os filmes parecem colocar a questão do poder, de algum modo, no fulcro da trama. E é exatamente por isso que A forma da água deveria ser visto não como um conto de fadas cujo sapo não vira príncipe, mas como uma fábula política dentro de uma história de amor, não como A bela e a fera, mas como uma grande metáfora sobre a arbitrariedade dos tomadores de decisão, que decidem inclusive quem é monstro e quem é humano.

Quem somos

Del Toro escolheu usar uma figura alegórica, uma espécie de peixe fora d'água para falar de alteridade e poder. Seu filme nos faz lembrar que às vezes nos sujeitamos ao discurso de quem manda tão fielmente que nos esquecemos de quem somos. Às vezes aceitamos ser o que dizem que somos: monstros, lixo, imprestáveis.

A forma da água narra a história de Elisa Esposito (Sally Hawkins), uma mulher muda de origem mexicana que trabalha como faxineira no laboratório experimental de um programa secreto do governo americano, onde uma criatura fantástica é mantida presa e maltratada.

O governo americano entra na corrida espacial com os russos, que estão vencendo a batalha. O Tio Sam então descobre esse ser aquático, meio peixe, meio homem, considerado deus pela população ribeirinha do Rio Amazonas, onde foi capturado, talvez apenas uma criatura desgarrada de seu mundo, que agora será cobaia no projeto espacial como o primeiro ser vivo mais próximo da forma humana a ganhar o espaço. É um segredo muito bem guardado.

Segredos guardados

Ninguém guarda um segredo cujo núcleo irradiador seja a felicidade, a não ser um raro tipo de egoísta maníaco. O que guardamos trancado a sete chaves, no mais sombrio espaço  de nossas entranhas, é a monstruosidade. Isso vale para o indivíduo e para a coletividade, para a família e para o Estado.

Guardar segredos monstruosos é uma especialidade das grandes potências. Mas os monstros em si, aquilo que acaba levando a fama do segredo guardado, muitas vezes não são tão feios quanto se pintam. Feio é quem faz dele monstro. Feio é o poder.

Apesar disso, A forma da água é um filme leve, como se fosse nos costurando por dentro. O irretocável Inácio Araújo, que escreve na Folha de S. Paulo, detestou o filme de Del Toro, levando em conta a linguagem, que ele considerou antiquada, e o conteúdo, que explora a figura do latino, do negro junto a uma figura monstruosamente patética, na sua visão, no fulcro do drama lírico-fantasioso.

Talvez Araújo não tenha mais espaço para cesuras, por já ter visto tudo, e não mais estar disposto a sentir uma costura estética dentro de si. Em A forma da água, é alguma coisa que acontece por dentro que interessa, tanto é que a protagonista é muda, e tem no silêncio o veículo  que conduz seu bem mais precioso, a coragem de lutar.

O filme de Del Toro corre o risco de ser esquecido como tantos outros filmes que entram na celeuma do Oscar. O próprio Araújo lamenta que talvez Trama fantasma, com o impecável Daniel Day-Lewis como um costureiro excêntrico (seu último papel no cinema, segundo o próprio ator), um filme perfeito, e por isso mesmo, por sua perfeição (tudo no lugar), seja esquecido posteriormente. Mas, por enquanto, A forma da água deve ser lembrado como a narrativa que mostra como o poder trata com desprezo aquilo que é diferente.

Para o poder, o diferente serve como objeto, seja para suprir uma demanda de laboratório, seja para atuar como burro de carga, serviçal. Em outros casos, obviamente, o diferente também é visto como ameaça, que deve ser enfrentada e subjugada.

Elenco

Michael Shannon, um excelente ator, faz Strickland, o agente americano responsável pela manutenção da forma da água, e é quem a tortura e a despreza, como despreza Zelda (Octavia Spencer), a amiga negra de Elisa, que também tem como amigo Giles (Richard Jenkins), um homem solitário, desprezado por um atendente de lanchonete por ser gay.

Esses três personagens, Elisa, Zelda e Giles, é que vão tentar salvar a figura da água. Além de Sally Hawkins (cuja atuação é mais que uma performance, é como se flutuasse em pleno ar, tamanha leveza em cena), indicada ao Oscar de Melhor Atriz, Octavia Spencer e Richard Jenkins concorrem nas categorias de Atriz e Ator Coadjuvantes. Não seria injusto se Michael Shannon estivesse nesse páreo. A forma da água certamente tem o elenco mais bem dirigido desse conjunto de nove filmes (junto com Trama fantasma).

A questão da mulher no filme também é costurada de modo sensível. Zelda, a personagem negra, sustenta um marido que fica o dia todo de pernas para o ar, com a desculpa de que tem problema de coluna. Elisa é solitária, não tem vida social, e seu único prazer é mergulhar na banheira e se masturbar. A mulher de Strickland é completamente submissa aos caprichos sexuais do marido. É como se todas estivessem presas numa teia invisível.

Strickland sintetiza o lado secreto da monstruosidade que passa pelo mundo como algo bom. Por isso, para esse tipo de gente, a dignidade não  interessa. “Isso é coisa que cobramos dos outros”, diz seu superior.


Eles são a metáfora do poder que deve ser combatido. São quem divulga o diferente como monstro ou como pária por este estar em desvantagem. Mas basta sua vítima realizar algo de extraordinário, e colocar em xeque o poder de reação dos algozes, para que seja vista como um deus.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 4 de março de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)

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